A propósito das crianças portuguesas que falam “brasileiro”

A também nossa Paula Sofia Luz publicou recentemente uma reportagem que deu algum brado e fez sair muitos patrioteiros de tocas mal frequentadas: “Há crianças portuguesas que só falam ‘brasileiro'”. Desde portugueses enojados a brasileiros ressabiados, juntaram-se nos comentários do jornal e das redes sociais dezenas ou centenas de idiotas de ambos os lados do Atlântico, agarrados a estereótipos e a interpretações espúrias da História, ou melhor, de um conjunto de sentimentos e de preconceitos que alguns confundem com História.

O fenómeno da influência do português do Brasil na expressão dos jovens portugueses não é novo e pode (e deve) ser discutido, excluindo qualquer laivo de superioridade ou de inferioridade e incluindo linguistas e professores de Português, sendo que, neste último caso, há um afastamento indesejável entre ambos os grupos – polemizando já um pouco, e sendo eu suspeito, há alguns linguistas que imaginam os professores como meros receptáculos, mesmo quando o assunto é o ensino de uma norma linguística, por muito que este conceito contenha algo de demasiado artificial.

Assim, se é verdade que não faz sentido censurar (em qualquer dos sentidos da palavra) os conteúdos brasileiros, é importante pensar naquilo que se chama o “cultivo da língua”, expressão difusa que se pode prestar a usos elitistas desajustados e que poderá, muitas vezes, entrar em conflito com a natural circulação de palavras e de conceitos.

A influência da cultura brasileira em Portugal é enorme, faz parte de nós, tal como a americana (ou anglófona) ou, durante alguns séculos, a francesa. Tudo isso implica, evidentemente, o uso ou a naturalização de palavras estrangeiras ou originárias de países estrangeiros – não é possível estar aberto ao mundo e não receber mundo.

Isso, no entanto, de um ponto de vista normativo, que é aquele que preside à actividade de um professor de línguas (materna ou não), não nos pode impedir de pensar sobre aquilo que se diz e que se escreve, não, repito, por razões patrioteiras (não confundir com patrióticas, embora estas descambem facilmente naquelas), mas porque é importante combater a possível descaracterização das línguas e porque não faz sentido usar ferramentas estrangeiras, quando temos disponíveis materiais equivalentes em Portugal.

Tome-se como exemplo a excessiva prudência ou mesmo pudor com que se passou a (não) usar a palavra “bicha” para designar uma fila, por influência do português do Brasil. Entre outos exemplos do excesso desnecessário de inglês, note-se a praga do “feedback” e do “timing”, em detrimento, no primeiro caso, do comentário ou da resposta, e, no segundo, do momento ou do prazo. Só quem estiver cego por sentimentos ou por preconceitos é que poderá ver nestas notas qualquer indício de xenofobia ou de complexo de superioridade.

O pensamento sobre a língua, como qualquer pensamento, faz-se com base em metáforas. É comum falar-se sobre a língua como um ser vivo que passa por modificações naturais. Faz sentido. Pensemos, a propósito, numa árvore (metáfora de varias genealogias, de resto) – o botânico e o agricultor têm-na como o mesmo objecto. O primeiro limita-se a estudá-la, o segundo quer cultivá-la. Ambos têm razão e, dependendo do contexto, podem precisar um do outro.

A minha infância e a minha juventude, como acontece com tantos contemporâneos, estão carregadas de cultura brasileira: li os Patinhas da Disney e os primeiros álbuns do Tintin em português do Brasil, tantos e tantos heróis da minha banda sonora são brasileiros, outros tantos da grande literatura são da mesma nacionalidade, cinema e televisão brasileiros fazem parte de mim. Para xenófobo, ainda me faltará um bocado.

Os jovens portugueses, no entanto, têm ao seu dispor uma extraordinária ferramenta que torna a cultura brasileira omnipresente: a internet. Uma busca em português no Google remete-nos para centenas ou milhares de páginas brasileiras; o youtube está cheio de português do Brasil. Tanta quantidade terá, necessariamente, efeitos no português escrito e falado.

Sem dramas nem facilitismos, sem sentimentos nem preconceitos, o debate sobre esta e outras influências deve ser feito. Diria mais: há um debate sobre o ensino da língua portuguesa por fazer, contanto que não haja complexos de superioridade ou de inferioridade, porque seria importante que, no futuro, não se repetissem imposições como a do acordo ortográfico ou da terminologia gramatical, entre outras aberrações. É certo que esse debate deveria, também, ser suscitado pelos próprios professores, mas, infelizmente, a vontade é pouca ou nenhuma.

Comments

  1. Alexandre Barreira says:

    ……”vá prá bicha”……velhos tempos……agora é assim…….”respeite a fila….sua bicha”…..!!!!!!!

  2. A problemática da superioridade ou inferioridade não pode nem deve ser varrida para debaixo do tapete como faz o Nabais, pois ela existe sim e manifesta-se a cada passo, queira-se ou não. Assim, a superioriddae da cultura e da economia anglosaxónica é mais do que evidente, assim como a superioridade da cultura brasileira materializada na sua versão do português.
    Goste-se ou não dessa situação, a versão falada e escrita no rectângulo é a nossa e não outra. Logo, há que tomar as medidas necessárias para não expor crianças e jovens desnecessariamente a outros suportes linguísticos, defendendo a língua portuguesa como sendo a nossa verdadeira pátria. Claro que não precisamos exorcizar nada nem ninguém, apenas cultivar com esmero a língua em que nos revemos.

    • Rosa Lourenço says:

      Concordo absolutamente!!!

    • Paulo Marques says:

      Está declarada, assim, por decreto, a superioridade da “cultura e da economia anglosaxónica”, seja lá o que isso for; nem se discuta, porque isso envolvia pessoal das humanidades, e toda a gente sabe que, ao contrário da economia, é uma ciência inexacta, ortodoxa, e cheia de gente séria.

      • Rui Naldinho says:

        Ó Paulo, o texto do Joseoliveira é uma constatação.
        Goste-se ou não, parece-me uma evidência.
        Podemos depois discutir porque se chegou aqui.

        • Paulo Marques says:

          Uma evidência? Que é que os americanos têm de anglosaxões, e o que é que têm em comum com ingleses ou australianos? A língua? É superior em quê, vende bem? Passarão os caros a falar da superioridade da cultura chinesa em breve?

      • O Paulo bem sabe que aqui ninguém decreta nada. Apenas me limito a constatar os factos. Agora, se não gosta deles, temos pena.

    • António Fernando Nabais says:

      Em que consiste essa superioridade das culturas anglo-saxónica e brasileira?

      • Rui Naldinho says:

        Bom dia, António

        A superioridade da cultura anglo-saxónica não estará tanto no plano formal, também recuso a ideia de superioridade nesse domínio em relação a outras culturas, até porque isso seria perigoso, mas sim numa certa colonização ou até massificação desta, à escala mundial. Isso verifica-se no domínio da língua, da música, do ordenamento jurídico às relações internacionais. Podíamos tentar encontrar uma multiplicidade de razões para isso ter acontecido, algumas parecem-me óbvias, mas não me cabe a mim dissertar sobre matéria que é para estudiosos.
        Agora há constatações de facto.
        O número de estrangeiros na Europa, por exemplo, a falar inglês, é seguramente superior ao número de britânicos a falar todas as outras línguas europeias somadas. A influência do rock na música mundial, está bem patente em muitos estilos musicais. E podíamos ir por aí fora, que não faltariam exemplos.
        No caso brasileiro a situação é um pouco diferente, mas ainda assim com semelhanças ao anglo-saxónico.
        Nota-se também uma influência muito forte da cultura brasileira na nossa música, por exemplo. Mais até do que no português escrito e falado. Já o inverso quase não existe.
        Eu não sei mesmo se aqueles iluminados que propuseram o AO90, não se basearam no princípio da “capitulação” em face do domínio da cultura brasileira sobre a nossa.
        Estamos a ser colonizados pelas expressões e formas brasileiras no domínio da língua portuguesa?
        Vamos então abandonar o nosso puritanismo e colamo-nos a eles, para não ficarmos a falar sozinhos.
        Se não foi isto, mais parece.

  3. Filipe Bastos says:

    Também cresci com o Tio Patinhas, Nabais, mas sobretudo com as telenovelas: a colonização brasileira começou em força com a Gabriela, continuou com a Escrava Isaura e atingiu talvez o pico com Roque Santeiro. Após tantos anos sei ainda estes nomes de cor, mesmo detestando o género.

    Claro que isto pouco dirá a um jovem. A internet trouxe a inevitável vantagem de 200 milhões sobre 10 milhões. Para o resto do mundo, português é o do Brasil. Têm tanto interesse no nosso como em grego ou em húngaro.

    Não sei a solução, se é que existe, num mundo onde a hegemonia económica e capitalista privilegia o Brasil sobre o pequeno e pobre Portugal, e onde a hegemonia cultural endeusa a ‘diversidade’ e a miscigenação. À nova esquerda pouco importa a cultura europeia; só as outras são ‘vibrantes’ e dignas de defesa.

    Como professor, suponho que não possa fazer muito. Falta o tal debate de que fala, mas com estes pulhíticos é escusado.

  4. Paulo Marques says:

    Já deixámos de criticar a invasão japonesa, a chinesa, até a americana, agora passamos à versão do “brasileiro”.
    As crianças agora amam os iPhones e os tablets; são mal criados e desprezam a autoridade; mostram desrespeito pelos mais velhos e adoram andar na borga em vez de fazerem exercício. Os putos são hoje pequenos ditadores, não os respeitadores das suas famílias. Já nem tiram os olhos do telemóvel quando os mais velhos entram na sala. Contradizem os pais, falam antes dos convidados, devoram guloseimas à mesa, cruzam as pernas e tiranizam seus professores. – adaptação livre do que Sócrates diria hoje da juventude perdida

  5. Concordo que uma língua seja dinâmica, mas ela só o será se houver intercâmbio cultural. linfelizmente, exportámos mas quase nada importámos de vocês portugueses. E há coisas maravilhosas que goataria de ver no ‘Brasileiro’: o retorno das consoantes mudas de ‘,facto’, ‘contacto’…meu Deus, que palavras belissímas de se escrver assim! “Sumptuso” pelo horrendo “suntuoso”!

    Algumas belas expressões: ” Em direto desde o Porto” ,”amo-te”, “”mais valia há em amar o próximo”, “Viveu demasiaso e morreu feliz”. “Moro naquele sítio”, “vá àquela paragem”. São tantas as coisas que Portugal poderia legar ao Brasil. Mas os corações duros de ambos criminalizam e rechaçam as expressões e os modos dos opostos paises. O aprendizado atrofia quando a alma está eivada de ódio.

  6. Serei sempre vossa, mesmo quando há tanto o tempo não me deixa sê-lo. Experimentei com este trabalho um fenómeno violento de ódio na internet sobre o qual até já tinha escrito, a respeito do qual já muito tinha lido, mas que é – de facto – avassalador. Um dia depois de mais uma volta ao sol, o que eu peço é só isto: bom senso, gente. Não precisamos de muito mais. Tino. O resto está tudo na língua. Até as as aspas, que muitos, pelos vistos, não sabem ler.

  7. Jose C. says:

    A situação é ainda pior, pesquisem por Língua Ellene e descobrirão

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