Medos

Porque a passagem de ano “já lá vai” e esta vida tem pouco de “festa”, aqui vai o primeiro deste ano.

Algumas vezes penso que por coerência ética nem deveria escrever sobre Portugal. Pela primeira vez tenho a sensação de ser uma espécie de “traidor à Pátria”. Alguém que se pudesse, saía daqui porque quase todos os outros Países são muito melhores que o nosso.

Portugal é o único País da Europa onde o facto de se ter um emprego não garante a saída da “pobreza extrema”. Portugal é o único País da Europa onde não há mais que duas condições (alternativas) para se conseguir chegar à abundância: sorte (nível bambúrrio) ou corrupção. O talento, o mérito ou o trabalho não garantem absolutamente nada.

Uma miríade de razões podiam ser apontadas para explicar esta desgraça. Esta condição inultrapassável de termos de sofrer mês após mês para assegurar o essencial. Esta condenação perpétua de vermos tanta e tanta coisa que nos foi, nos é e nos será inalcançável.

Pessoal e convictamente, escolho o “medo” como a maior dessas razões. Um “medo” transversal, residual e quase unânime. Um “medo” incompreensível de quem tem tão pouco e mesmo assim consegue atingir níveis extraordinários de pavor. Pavor de quê? Pavor de perder essa ninharia. Um “medo” que nos faz obedientes, dóceis e submissos. Um “medo” que nos torna paranóicos, hipocondríacos e, principalmente, muito hostis a quem se consegue libertar desse “medo” paralizante.

E não há, infelizmente, maior demonstração desse “medo” que a forma como nos temos comportado nesta pandemia. Desde logo pela generalizada alteração de conceitos como a prudência e a responsabilidade. A prudência passou a ser a possibilidade de ir além do razoável cuidado para se tornar numa arma de descortesia agressiva em que “os outros” só têm relevância na exacta medida da sua capacidade para nos prejudicar (infectar). Mesmo ou principalmente quando esse prejuízo é quase insignificante.

Já a responsabilidade deixou de se medir pela ancestral figura do “bonus pater familiae” para se definir muito mais pelos critérios do “síndrome de Münchhausen”. Isto é, passamos a exigir já não a sensatez, mas sim uma bizarria obsessiva e delirante. E como “bons” Portugueses que somos, o objectivo deixou de ser reparar o que quer que seja para passar a ser a sinalização dos culpados pelo mal que nos assola. Obviamente, nunca nós próprios.

E este entendimento de “responsabilidade”, ele sim, tão pouco sadio, além de nos retirar a lucidez para tentar efectivamente perceber o que realmente se está a passar, esvazia a própria vida. A nossa existência não pode ou não deve definir-se exclusivamente pela compulsão neurótica de a prolongar. Há muito mais vida para além da medíocre sobrevivência. Principalmente quando, como agora, o perigo é reduzido.

Até porque não há maior certeza que aquela de saber que qualquer obstinação em prolongar a nossa permanência neste mundo está, mais cedo ou mais tarde, implacavelmente destinada ao fracasso.

Comments

  1. Paulo Marques says:

    “Só em Portugal”, versão 32423. Tenham mas é medo do socialismo na minha cabeça, apesar de estarmos sempre a fazer continência à polícia e à vigilância.
    Façam lá as sardinhadas que quiserem, mas poupem-nos.

    • POIS! says:

      Pois o que é verdadeiramente inquietante, aterrador até…

      É que esta série do “medo” ainda vai só no terceiro post.

      Receio vivamente que haja continuação.

  2. POIS! says:

    Pois tenho de reconhecer…

    Que também estou com medo, mas sinto pavor de o admitir.

    E tive receio de o confessar.

    Agora que o fiz, sinto temor pelas inevitáveis consequências.

    Na realidade estou em pânico. Completamente apavorado.

    Era disto que eu tinha medo.

  3. Ah, compreendi-te. A culpa do desastre é do medo. E eu a pensar que era do sistema. Devo ser burro como o caraças. Ainda bem que há uns espíritos iluminados e desbravar as trevas da santa ignorância. As grandes farmoquímicas agradecem reconhecidas a estes artistas tugas que usam marca “sistema”.

  4. Outro que nunca ouviu falar nos “coletes amarelos”.

    • Paulo Marques says:

      Ou do medo quem meio mundo político da mais maior democracia do mundo tem de que toda a gente possa votar.

    • British says:

      What ?

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