Gouveia e Melo, Ricardo Araújo Pereira, Salvador Sobral e Éder entram num bar

Imagem: @rtp

Álcacer Quibir, 1578. D. Sebastião desaparece em combate, depois de, alegadamente, ter proferido as suas últimas palavras, perante um cenário de possível rendição: a liberdade real só há de perder-se com a vida.

Com isto, criou-se um mito que perdurou vários séculos, até aos dias de hoje, e que está enraizado na identidade do povo português, se é que é possível deslindar características concretas de um povo, enquanto massa social mais ou menos homogénea.

Esta característica em particular é, no meu entender, um dos bloqueios funcionais que impedem que Portugal possa dar um passo seguinte, numa evolução de identidade e identificação, numa subida de nível cultural, na forma como nos vemos e como nos apresentamos aos outros.

O sebastianismo está bem patente no presente, quando um cidadão que tenha algum tipo de destaque em funções de liderança, com uma personalidade forte, é tido por parte da população como uma reencarnação do jovem monarca que regressaria, numa manhã de nevoeiro, para salvar a pátria das agruras do destino. O povo corre a pedir que esse cidadão nos guie, nos lidere, sem sabermos bem para onde. Confiamos de uma forma cega que, se conseguiu desempenhar a sua função, então estará apto para nos fazer crescer.

O Almirante Henrique Gouveia e Melo é o mais recente membro dessa lista de salvadores da pátria. Encarregue de coordenar o processo de vacinação contra a covid-19, desempenhou a sua função com a qualidade pretendida. É inegável o seu contributo para o bem decorrer do processo que deixou Portugal, à altura, na frente de outros países europeus, no que ao processo de inoculação dizia respeito.

A partir daqui, o país começou a suspirar com uma possível candidatura à Presidência da República, uma ideia trabalhada dentro da comunicação social e, infelizmente, manietada pelo próprio Gouveia e Melo. Se, numa primeira fase, retirou essa hipótese do pensamento geral, a verdade é que mudou o próprio discurso, deixando a decisão nas mãos de Deus, dizendo que é a ele que pertence o futuro. E como gosta tanto Portugal de uma boa frase religiosa…

Em 2017, no Governo Sombra, e no rescaldo das vitórias de Portugal no Euro 2016 e no Festival Eurovisão da Canção 2017, Ricardo Araújo Pereira fez uma pequena rábula à volta da ideia de que já não sabia ser português, porque estávamos em alta, vencendo competições, concursos. Como nos iríamos queixar da vida, agora?

O objecto desta piada é, obviamente, o povo e a sua característica quase de coitadinho. Os sucessos parecem saídos de uma qualquer sorte, parecem uma obra do acaso. E se a Selecção Portuguesa, no Europeu em 2016, teve alguma desta sorte, na forma como com vários empates chegou à final, vencendo a França com o golo de um patinho feio na forma de Éder, a verdade é que Salvador Sobral, na Eurovisão, derreteu a concorrência – foram 758 pontos, a maior pontuação de sempre. É necessário que olhemos para as conquistas como resultado natural do trabalho, do talento, da qualidade, do esforço e da dedicação, e não como obras do acaso que não sabemos quando voltarão. É um problema quase de auto-estima do povo português.

E isto sente-se nos cafés, nas ruas, nas conversas que vamos tendo e vamos ouvindo em surdina por Portugal dentro. Há um comodismo, um conforto permanente, uma inércia que nos faz andar à deriva, à espera que algo caia do céu, à espera do tal líder que nos vá guiar não sabemos bem para onde. O raciocínio e a capacidade de pensar de uma forma complexa estão emperrados. Sair de uma qualquer zona de conforto em que fomos colocados é-nos contra-natura.

Não digo que a culpa é só de cada um. Uma série de elementos complexos da nossa realidade têm culpa em todo este ambiente, como a perspectiva global em relação ao trabalho e à forma como o olhamos, numa espécie de acordo laboral de sobrevivência; como uma comunicação social que, de uma maneira geral e salvo raras e boas excepções, contribui para essa inércia colectiva – basta vermos como, à data deste texto, programas como Big Brother e afins têm muito mais tempo de antena que os debates para as eleições legislativas; uma classe política que é uma das principais culpadas pela forma como insistente e constantemente desilude os eleitores, com esquemas, esqueminhas, mentiras e atalhos;

No entanto, existe uma quota parte individual de culpa e de responsabilidade. Porque o ser português não é uma identidade cunhada de uma forma eterna, como um destino ao qual não se pode fugir. É uma realidade dinâmica, em constante construção, e que é a soma de todas as identidades de cada um dos portugueses. Se formos mais exigentes connosco, se nos responsabilizarmos mais pelos nossos erros – não são os políticos, não é a vontade de Deus, somos nós mesmo – conseguiremos também ir buscar louros, de uma forma interna, ao que conseguimos de bom. Para que os nossos sucessos não pareçam saídos de nós, mas sejam parte integrante daquilo que somos. Porque se D. Sebastião tinha realmente todas essas características que lhe oferecem – a tenacidade, a garra e a coragem – então temos realmente de nos preparar para o seu regresso. Não vá ele, ao ver o estado das coisas, voltar para trás.

Comments

  1. Paulo Marques says:

    «O sebastianismo está bem patente no presente, quando um cidadão que tenha algum tipo de destaque em funções de liderança, com uma personalidade forte, é tido por parte da elite instalada como uma reencarnação do jovem monarca que regressaria, »

    FTFY. HTH.

    A culpabilização do povo continuará até os resultados de repetir a mesma coisa muitas vezes não mudarem.

  2. Filipe Bastos says:

    Boa análise do César Alves, a que acrescento: esta ânsia por um salvador não é um exclusivo português; nem é preciso lembrar Hitler ou Churchill para constatar que todos os povos têm, para o bem ou para o mal, os seus santinhos e messias.

    O caso português é talvez mais patético que outros, em parte por ser um país pequeno e pobre que já foi um dos donos do mundo. Confrontado com a sua real dimensão, tende, como um velho mirrado, a suspirar pelo vigor perdido e a projectá-lo na figura de um ‘vencedor’, seja um Gouveia ou um bronco Ronaldo.

    O endeusamento do ‘líder carismático’ é, no entanto, um traço universal que vem do tempo das cavernas. A maioria nem é capaz de reconhecê-lo; está tão enraizado que se submetem sem pensar.

    Daí, também, a História ser um longo rol de monarcas, ditadores e outros mamões; uma ínfima minoria que explora os demais. E daí a democracia ‘representativa’ que temos, na prática uma monarquia 2.0, onde uma dúzia de pulhíticos decidem por milhões.

    Este tipo de pseudo-democracia só podia dar no que deu: uma cidadania infantil que estupidifica e aliena, onde tudo pagamos e nada decidimos. Até quando?

  3. O texto do César tem inegável qualidade e aponta ao problema. Mas a realidade é um pouco mais complexa. Se tudo aquilo é verdade, tb não é menos verdade que a actual onda sebástica em torno do almirante dos submarinos não tem a ver só com a atávica propensão tuga. Creio que tal resulta sobretudo por um lado da consciência geral de que estamos num retrocesso permanente relativamente a todos os parâmetros essenciais. Por outro lado, todos bem sabemos que a classe política apenas luta por manter o status quo. Eles não querem que nada mude. Se a esquerda (ou o que dela possa restar) quisesse unir-se, teria todas as condições para romper e mudar mesmo, no sentido mais progressista do termo. Mas não querem de facto. Principalmente o PCP e seus satélites sempre recusaram aliar-se seja com quem for, mesmo quando até apoiavam um governo. E o BE aposta tudo na dimensão parlamentar. O povão sente ou pressente tudo isso e no desespero anseia por uma qq libertação, salvação, redenção, o que se quiser. Ir aonde, pergunta o César? As pessoas só querem é viver descansadas e em paz. Só que, como diz o poeta, pela paz que nos recusam, muito temos que lutar.

    • Paulo Marques says:

      Teria todas as condições, fora o apoio popular, institucional, legal, e internacional.

    • Mario Freilao says:

      Engraçado ! O PCP não queria, o BE não queria. E o PS queria ? Quando é que houve o melhor governo em Portugal após o 25A ? Não foi em 2016/2019 ? Porque aqueles não quiseram ? E quem é que não quis em 2019 ? Quem é que em 2019 se ” cansou” de fazer as reversões das malfeitorias PaF/Troica ? Não foi quem teve uma maioria relativa ? Quem é que queria que os outros apoiassem o seu programa de governo com cedências insignificantes ( com o BE não houve cedência nenhuma) como se tivessem maioria absoluta sem ter ? O BE “aposta tudo na dimensão parlamentar” ? Tirando a descida do IVA da restauração quais foram os grandes avanços do governo ? Não foram as medidas dos outros partidos ( o que contribuiu, em muito, para o sucesso económico do governo)? Não foram aqueles partidos que “deram a volta ” ao programa de governo do PS ( que também tinha cortes ) ?

      • Paulo Marques says:

        Sendo que o autor falou em romper e progressismo, não estou a ver o que é o que PS tem a ver com o assunto.

      • Júlio Santos says:

        Obviamente que o programa do PS, que em boa hora substituí o de Passos Coelho de má memória, não previa cortes, mas sim, a sua reversão. Obviamente que os partidos da geringonça deram um precioso contributo para a sua concretização. Não custa nada sermos justos e sérios na análise.

  4. JgMenos says:

    O coitadinho tradicionalmente apontava a um D. Sebastião e à salvação da Pátria.
    Agora temos o tadinho, a quem qualquer merda lhe serve desde que lhe dê uns trocos, que quanto à Pátria, nem sabe bem do que se trata.

    • Paulo Marques says:

      Sabemos todos, a Pátria é o sonho molhado de meia dúzia de perdedores de algo que nunca existiu.

    • POIS! says:

      Pois mas…

      Afinal, apontar ao Sebastião Primeiro e Único também não seria grande salvação.

      Sendo assim, mais vale que a pátria se desenrasque, que a malta já tem problemas de sobra.

  5. Júlio Santos says:

    Gouveia e Melo foi extraordinário no que fez e enquanto fez. A sua retirada de cena foi muito obscura, mas limpa, para quem tomou a decisão. Simplesmente lamentável.

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