A ideologia do contra

Rodrigo Gavazzi

 

Para o Partido Comunista Português, a sua política externa foi sempre o seu grande
calcanhar de Aquiles diante da opinião pública, com algumas defesas polémicas de regimes
que ostentavam algum tipo de ideologia similar à sua. Contudo, a Guerra na Ucrânia e a
atenção mediática e política em volta da mesma, fez com que a política externa do PCP
tomasse o palco principal da ação do partido, como não tinha acontecido até hoje.
O apoio, ou a ambiguidade deliberada do PCP em relação a regimes cujo currículo
democrático é, no mínimo, duvidoso, não é recente, contudo, costumava sempre pautar-se
pela defesa de estados que, de uma forma ou de outra, defendiam a ideologia marxista-
leninista, ou uma aproximação da mesma, com este apoio a ser acentuado num contexto de
Guerra Fria com uma ordem internacional dividida entre Leste e Oeste. Os casos da
Venezuela, Coreia do Norte, Cuba e China saltam à mente, e, achando-se ou não condenável
esta aproximação, era coerente com a orientação ideológica do partido.

No entanto, após o fim da Guerra Fria, e em especial com o virar do século e com o
começar da “Guerra ao Terror” iniciada pelos Estados Unidos após os atentados do 11 de
setembro, o PCP parecia continuar preso ao passado, ao mundo bicéfalo da Guerra Fria,
oposto ao Bloco Ocidental, mas agora contudo com um revés importante: alguns dos regimes
que o PCP apoia ou faz uma defesa ambígua são agora muitas vezes a completa antítese da
ideologia marxista-leninista. Casos assinaláveis como a defesa do Irão, uma teocracia, ou a
Síria, um regime proto-fascista (com um voto infame do PCP contra a condenação do uso de
armas químicas contra civis por parte de Al-Assad), ou ainda no século XX, contra a
intervenção da NATO na Jugoslávia, contra o regime fascista sérvio, numa tentativa de travar
o genocídio bósnio e kosovar, demonstam a mudança da política externa do PCP, que passou,
de certa forma, de uma política de “defesa dos seus”, para uma posição que apenas se prima
por ser anti-NATO, anti-UE e anti-EUA, deixando muitas vezes, entre votos de solidariedade
e atirar de culpas para estas facções, apoios a regimes que, em muitos casos, não tolerariam a
sua existência.

Estes casos e muitos outros, mais ou menos polémicos, são citados frequentemente
dentro de círculos mais politizados da sociedade portuguesa, mas raramente alcançando o
mediatismo das massas, e nunca na proporção de hoje. Em Portugal, o grande foco no PCP
está na sua política interna, e nas suas reivindicações laborais, que, sendo ou não favoráveis a
estas, nunca tiveram a carga quase fanática que se observa na sua política externa. Contudo, a
invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin, expôs, da forma mais flagrante até hoje, a
conturbada política externa dos comunistas: em vez da condenação da invasão, há um atirar
de culpas aos suspeitos do costume, com um quase justificar da invasão russa sob pretexto do expansionismo da NATO (que, convém relembrar, é voluntário) e focando-se na crítica da
Ucrânia e tentando fazê-lo passar por um estado a resvalar o fascismo. A gota d’água veio
com o alinhar com a retórica do Kremlin de que o massacre de civis em Bucha podia não
passar de uma encenação e de um ato de propaganda ucraniana.

Desta vez, devido à mediatização da guerra e dos alargados impactos políticos e
sociais da mesma, o PCP e a sua política externa viram-se colocados nas luzes da ribalta, e a
reação da sociedade em geral seria o que se esperava, com repúdio generalizado da sua
posição. Mesmo de um ponto de vista ideológico, à esquerda, é inconcebível o apoio de uma
potência autocrática, oligárquica e reacionária, apoiado pela extrema-direita europeia, em
detrimento de um estado democrático que, tendo as suas mais variadas falhas, se vê invadido
por uma potência várias vezes superior a si, com o apoio aos povos oprimidos e subjugados a
ser colocado na gaveta por poder espetar uns ferros nos seus culpados de todos os pecados do
mundo, a NATO, a UE e os EUA.

Os impactos políticos desta posição, ao contrário de no passado, poderão muito bem
vir a ser sentidos, mesmo sem considerar por que caminho enveredará o conflito na Ucrânia.
No entanto, o PCP, um partido que, externamente, após a Guerra Fria, ficou órfão de farol
para a sua política externa, e, mesmo podendo acabar por não perder no campo eleitoral, já
perdeu no campo moral.

Comments

  1. Rui Naldinho says:

    Francisco, o artigo está bom. Só o último parágrafo me parece romântico.
    Em política só se perde quando perdes o poder de decidir , ou, no mínimo, influenciar.
    Na política não há moral. Nem o primado da Lei por vezes é tido em conta, pelo cidadão. Caso contrário, PS e PSD ficariam arredados do poder alguns anos, por indecência e má figura, tantas vezes os seus dirigentes e ex dirigentes foram punidos em tribunal. O que vemos é a alternância entre os dois.
    Nos regimes democráticos há o primado do voto. E o voto para além de ser secreto e uninominal, é afectivo e/ou de classe.
    O resto são um conjunto de visões idílicas de um
    Mundo que nunca existiu.

    • Francisco Figueiredo says:

      O texto não é meu. Houve um erro de edição. O texto é do Rodrigo Gavazzi.

  2. Paulo Marques says:

    Podia-se perguntar se um novo Baptista em Cuba, um novo Sha no Irão ou o ISIS na Síria iria ser realmente aceitáveis. Ou porque se acha improvável que se descubra que em nome da Ucrânia se faz agora o mesmo que foi feito em nome da Croácia ou Bósnia sobre os nossos olhos e depois se varreu para debaixo do tapete. Ou porque é que declarações de uns são más, criticadas pela semana toda, e outras idênticas por pessoas do bem passam despercebidas até dizerem o soundbyte correcto para repetir ad-nauseum como contraponto ao primeiro.
    Podia-se, mas já não há paciência, da esquerda à direita, de autoritários a liberais, de americanos a russos, a verdade é a primeira a morrer, e 99% do que é escrito é lixo a puxar o lustro à sardinha, com muito pouca preocupação sobre o day after. Mas não só, com muito pouca preocupação sobre o que continuam a alimentar em casa, a passar pelos pingos da chuva com uma seriedade contorcionista de se tirar o chapéu.

    • JgMenos says:

      Tinhas a intenção de dizer alguma coisa?
      Se sim, ainda lá não chegaste.
      Se levantar pó era a intenção, foi um sucesso!

      • Paulo Marques says:

        Faço-te um desenho. O fim da história não ter chegado só por causa do homem mau é uma estória para boi dormir.

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