A Leonor, a Bárbara Bandeira e uma história de amor

Há momentos que dificilmente se esquecem, Leonor.
Enquanto eras informada pelos médicos do Hospital de S. João de que terias de ficar internada, enquanto eras picada para te colherem sangue, choravas por não poderes ir ao concerto da Bárbara Bandeira em Junqueira. «Ó pai, se voltar a comer bem, posso ir ao concerto de Felgueiras no dia 27?» – perguntavas-me já mais calma meia hora depois.
Compreende-se. És uma menina que viu os primeiros sinais de doença aparecerem há dois anos e que, a partir daí, perdeu amigos e praticamente todos os interesses na vida, a não ser a Bárbara.
Desde então, e apesar de todas as tentativas, é praticamente a única coisa que te interessa: os concertos, as fotografias com ela no final (já tens tantas!), as entrevistas, os clubes de fãs, as páginas dedicadas.
Desta vez, a doença veio com uma força inacreditável. Começou com a recusa do pequeno-almoço e progrediu rapidamente. Sem o sabermos, terá sido na mesma altura que deixaste de almoçar na escola. Daí até pulares o jantar e passares 24 horas sem comer, foi um pequeno passo. 24 horas… 48… 72.
Explicar o que é ter em casa uma filha com anorexia vai muito para além das minhas capacidades. Em 51 anos, este é o pior momento da minha vida. Cada refeição passou a ser um drama, que acaba cada vez mais vezes da mesma maneira: com o prato intacto. A firmeza inicial seria a atitude certa, mas a calma e serenidade aparentes não duram sempre. Começamos então a vacilar e depois vamos todos em crescendo até ao desespero. Na mesma refeição, perante a recusa alimentar, é possível começar com uma (fingida) indiferença e acabar a gritar e a chorar. Nuns dias estamos mais fortes, noutros desabamos.
Ver uma filha a morrer à fome não é algo para o qual um pai esteja preparado. A gente ouve, lê sobre o assunto, mas é lá longe. Quando nos toca à porta, percebemos que nunca nos explicaram como devíamos reagir. A impotência revolta: estar a ver e não poder fazer nada. Falar, argumentar, explicar e ter a sensação de não termos dito nada. Entrou a 100, saiu a 200. A impotência, a revolta, a incompreensão pelo que está a acontecer.
E à nossa frente, um muro de silêncio que nada diz. 13 anos e 39 quilos de adolescente que, a espaços, vão soltando frases como «quero ser mais magra» ou «no Instagram são todas tão bonitas» (como se tu não fosses mais bonita do que elas todas).
E vem o sentimento de culpa que guardamos para nós – teremos sido maus pais? E vem o medo de amanhã não conseguirmos aguentar. De desistirmos. De te vermos morrer.
Não, Leonor, não te deixaremos morrer. Como disse a tua mãe, mais depressa vamos nós!
Amanhã é um novo dia e vai começar tudo outra vez. Vais comer ou não? Vais definhar mais um bocadinho? Vamos manter a calma ou vamos desesperar? Talvez ambos.
Ainda não te contei, mas na quarta-feira, último dia do ano lectivo, dei aula ao 8.º C, a tua antiga turma do 1.º ao 7.º ano. Adoro aqueles miúdos, conheço-os há tantos anos!, foram teus colegas, teus amigos. Tinha preparado um bonito discurso de despedida, mas não consegui. Via-os à minha frente e só pensava em ti. Cresceste com eles. Mas eles estão saudáveis, bem-dispostos, tu estás aquilo que todos vêem… menos tu.
E chorei. Chorei muito durante a aula. Pela primeira vez em 30 anos de carreira.
Ontem, quando decidi com a tua mãe que tínhamos de te levar às Urgências, a segunda vez numa semana, parecias mais morta do que viva. Somavam-se praticamente 72 horas sem comer e estavas apática, branca. Sentiste dores de cabeça, falta de ar, tonturas. Não hesitámos e tu não reclamaste. Sabias que precisavas de ir para o Hospital. Como sabia a enfermeira da triagem que te atribuiu a pulseira laranja. Como sabiam os médicos que decidiram pelo teu internamento imediato.
12 horas de soro depois, com o pequeno-almoço tomado, parecias outra. Já tinhas cor e já sorrias.
Vamos ver por quanto tempo. É que não tenho ilusões, filha. Amanhã é outro dia e se calhar não vais querer comer. Não sei. A anorexia não é uma coisa fácil.
Mas sei que eu, a tua mãe e a tua irmã, teus fiéis admiradores, vamos estar por aqui e continuaremos a lutar. Estamos preparados para uma luta de muitos anos. Com a ajuda de um SNS que nunca te faltou e que, apesar de todos os seus defeitos e críticas de que é alvo, é das melhores coisas que temos por aqui. Pedopsiquiatria, psicologia e nutrição – já está tudo marcado a partir de segunda-feira.
Não vamos dar-te tempo para caíres em depressão. Na semana seguinte, começas a formação de férias no Teatro do Bolhão, tu que queres tanto ser actriz. Pelo meio, vais pôr o aparelho nos dentes. E juntos, iremos à praia. Ao cinema. E continuaremos a ir aos concertos da nossa Bárbara: Felgueiras, Trofa, Canedo, tudo à nossa beira.
Nessa altura, já terás 14 anos. A nossa Leonor de la Bastille, a nossa guerreira que num certo 14 de Julho nasceu para nos trazer felicidade. Uma felicidade que ao longo dos anos se traduziu de muitas formas mas que hoje se traduz numa só: num prato vazio.
E amanhã, filha, eu quero tanto ser feliz.

Comments

  1. Maria Antonieta says:

    Uma História de Amor, contada com tanto Amor, só pode terminar com um final feliz.
    É isso o que desejo do fundo do coração.

    Parabéns, Pai!

  2. JgMenos says:

    Votos de felicidade.

  3. Paulo Marques says:

    Ninguém merece passar por isso, mas fico contente que consiga passar para fora o que sente para conseguir lidar com isso. Só lhe posso desejar força e boa sorte, porque não sei que mais dizer.

  4. João L Maio says:

    Ricardo, um grande abraço.

  5. Duarte Campos says:

    Ricardo Muita força,muita coragem,muito tudo..
    Consguiu pôr.me a chorar e não é fácil quando se é pai e avô ler o que o Ricardo escreveu
    De Coimbra vai um grande abraço do Duarte Campos

  6. motta says:

    Um abraço!

  7. francis says:

    uma sobrinha passou pelo mesmo. Felizmente o Dr. Sampaio, no Hospital de Santa Maria, conseguiu reverter a situação e hoje é uma mulher normal, feliz com 3 filhas. Espero que a Leonor tambem consiga ultrapassar este problema e seja feliz, em breve. Nunca desistam dela !!!

  8. Nuno Campos says:

    Muita força e coragem, sei o que é estar na mesma angústia de ver quem mais queremos definhar! Felizmente, conseguimos encontrar ajuda, hoje a curva é ascendente e a recuperação visível, um bom acompanhamento é fundamental!

  9. Tocou bem fundo em todos nós. Haverá de tocar bem fundo na Leonor, e ajudá-la. E ajudar-vos. Força, muita força.

  10. Brand says:

    muito boa sorte e que no SNS consiga toda a ajuda que possa e que toda a família sare

Trackbacks

  1. […] a propósito do meu último post, agradecimento eterno à Bárbara Bandeira. Poucos fariam o que ela fez a troco de nada. Obrigado, […]

  2. […] nos proporcionou, tive muito tempo para pensar durante as 12 horas em que a Leonor esteve a soro. Escrevi o texto que já publiquei no Aventar. Pensei em ti e de que forma poderias ajudar a Leonor. Pensei em tudo o que tinha acontecido desde […]

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