Vida escravinha

Arquivo Rocha Peixoto, Castro Laboreiro, 1902. Fonte: Rede Portuguesa de Museus. Publicado no Blogue do Minho.

Ouvi, há tempos, a entrevista de Fernando Alves a Maria Antónia Lopes, professora na Universidade de Coimbra e que tem centrado a sua investigação num grupo de pessoas que descreve como “os invisíveis” – os pobres e as mulheres. Contava a historiadora que, à sua cadeira de História das Mulheres, os alunos chegam com a ideia de que o trabalho feminino começou na I Guerra Mundial ou, quando muito, nos começos da industrialização. Isto é, que foi só na ausência dos homens que as mulheres começaram a assumir tarefas fora de casa. Tendemos a esquecer-nos, e não são apenas estes alunos a fazê-lo, que as mulheres sempre trabalharam. As mulheres pobres, com certeza. E que esses trabalhos, invariavelmente árduos, deixam a ridículo a etiqueta “sexo frágil”. Estas mulheres eram lavadeiras, pastoras, artesãs, agricultoras. Cuidavam da casa, dos filhos, dos pais. E se perdiam a capacidade de trabalhar, fosse por envelhecimento, doença ou acidente, restava-lhes apelar à caridade.

A entrevista recordou-me uma leitura recente: Castro Laboreiro – Entre Brandas e Inverneiras, de Luísa Pinto, reportagem alargada sobre uma prática ancestral de nomadismo, que leva os habitantes da vila a passar os três meses de Inverno numa casa mais abrigada dos rigores da serra e os restantes nove meses na sua casa habitual. Desse livro, retive o relato de uma mulher, já septuagenária, que conta à repórter que a sua foi sempre “uma vida muito escravinha”. Di-lo assim: escravinha. O diminutivo, tão minhoto, não esbate a agrura da palavra. E ainda que os tempos sejam de maior conforto, com estradas asfaltadas, tractores, casas onde já existe saneamento, televisão e telefone, não temos razões para duvidar do que diz. Os dias de Castro Laboreiro que a repórter nos descreve são uma longa jornada, dias que não se distinguem uns dos outros porque todos são de trabalho árduo, em casa, no campo, com os animais. Muitos dos homens morreram ou estão emigrados ou fisicamente incapacitados. As mulheres ocupam-se de todas as tarefas e cuidam dos doentes. Na verdade, a vida delas é uma contínua sucessão de cuidados aos outros, ao longo das décadas: mães e pais, sogros e sogras, filhos, irmãos. Vestiram-se de negro quando os homens emigraram, não tanto para simbolizar a morte simbólica de quem partiu, mas para assinalar a responsabilidade que recaiu nos ombros delas. Guardiãs das casas, das terras, dos animais, do passado e do presente, “viúvas de vivos” sem tempo para lágrimas.

É por isso ainda mais admirável que, ano após ano, encontrem forças para manter a tradição da “muda”, que as leva a descer a serra, pouco antes do Natal, com roupas, panelas, víveres, galinhas, cabras e vacas, para se recolherem à “inverneira”, a casa, que, situada uns quantos metros abaixo na serra, será mais abrigada para passar os meses frios. Chegada a Primavera, voltam a carregar as trouxas para regressar à “branda”, a casa que as acolhe nos meses de temperatura mais amena.

Muitas confessam não saber por quanto tempo terão forças para manter a tradição, tão cansativa e particularmente penosa por implicar o transporte de doentes acamados. Mas vão continuando a muda enquanto podem, porque também esse é um fardo que entendem caber-lhes carregar.

Não há reforma que lhes traga descanso nem férias que lhes aliviem o peso sobre os ombros. Quando a Primavera chegar, daqui a mês e meio, mais dia menos dia, partirão de novo, com a casa, o rebanho e os doentes, sem deixar nada nem ninguém para trás.

São tantas as vidas escravas e tantas as invisíveis.

Comments

  1. João Mendes says:

    Sempre bom ter-te de volta, Carla!

    • Carla Romualdo says:

      Eu nunca chego a sair, isto é o meu Hotel California. Mas obrigada, Mendes!

  2. João Paz says:

    A memória faz parte de nós. Excelente texto Carla Romualdo, pena que não nos dês mais. Um apontamento da actualidade, a memória deveria fazer com que lutássemos para que esses tempos medievais não regressassem (apesar de ainda haver restos desse tempo. Mas não faz! Permitimos que António Costa e “sus muchachos” , cada dia em menor número, nos imponham quer através da miséria QUASE generalizada quer através da diminuação drástica de salários que, segundo ele, não podem ser aumentados quer através da repressão fascista das greves, de todas as greves importantes com que teve de lidar, siga o exemplo do SPD alemão quando levou Hitler ao poder. E….. cá vamos cantando e rindo da nossa miséria e dos miseráveis (por enquanto só P”S” e P”S”D mas o Ventura ou alguém com mais traquejo e as mesmas intenções está a espreitar ávido) que nos vão destruindo a vida e o país.

    • Carla Romualdo says:

      Obrigada, João Paz. Fico feliz por saber que continua a visitar-nos.

  3. Ana Moreno says:

    Como diz o João, sempre bom ter-te de volta, Carla.

    Mais a mais com um texto sobre o que é tão valioso e não entra no aldrabão do PIB; todos esses trabalhos de cuidados e sobrevivência não contam nada, porque não são vendidos nem comprados. Vivemos numa época vergonhosa, que só valoriza o negócio. E a competição, em vez da solidariedade. Obrigada por lembrares que ela existe.

    • Carla Romualdo says:

      Não contam, efectivamente, daí a invisibilidade. Obrigada, Ana.

  4. JgMenos says:

    Que comoção!
    Pois ele há vidas canseirosas? Que coisa horrivel!
    Sem férias pagas e banhos de mar? Parece impossível!
    E há quem diga que foi assim durante milénios? Nem quero crer!
    Nota: As galinhas, vacas e as cabras comem todos os dias e não estão a par dos progressos da humanidade nem têm sindicatos.

    • Paulo Marques says:

      E assim é que está bem, não é? Quanto mais fome, mais progresso!

    • POIS! says:

      Ora pois!

      Citando: “As galinhas, vacas e as cabras comem todos os dias e não estão a par dos progressos da humanidade nem têm sindicatos”.

      Vosselência é sindicalizado?

      Aahhh!

    • marsupilami says:

      Nota à Nota: Mas, manifestamente, frequentam blogues.

  5. Maria Aldina Lopes Brás says:

    Obrigada por este texto. É nossa obrigação divulgar o que se passava. Que cada um divulgue o seu testemunho em tempos de extrema direita. Eu acrescento ainda ao texto que as crianças vinham de aldeia em aldeia, para trabalhar e assim ganhar a sua sopa. Descalços e praticamente nús. A pouca roupa suja que traziam era a que cobria o corpo. E para que fosse lavda, tinham que se esconder nús no sótão..

    • Carla Romualdo says:

      Obrigada por esse testemunho. É importante resgatar essas memórias, sem dúvida, mas também as histórias de todos os invisíveis do presente.

    • JgMenos says:

      Aldina, dá-nos mais testemunhos do que só podem ser maldades da Direita!
      Fala-nos dos tempos em que a reforma do trabalhador era ser pedinte, e diz-nos o que se pode encontrar às portas das igrejas deste país, nos vãos de porta em noites frias.
      Ou talvez tudo se possa resumir a um poema, que conta toda a história de um passado que a cambada, para ter razão, sonha em recriar, e que diz:

      Pobres de pobres são pobrezinhos
      Almas sem lares, aves sem ninhos.
      Passam em bandos, em alcateias,
      Pelas herdades, pelas aldeias.
      É em Novembro, rugem procelas…
      Deus nos acuda, nos livre delas!
      Vêm por desertos, por estevais,
      Mantas aos ombros, grandes bornais,
      Como farrapos, coisas sombrias,
      Trapos levados nas ventanias…
      Filhos de Cristo, filhos d’ Adão
      Buscam no mundo côdeas de pão!
      Há-os ceguinhos, em treva densa,
      D’ olhos fechados desde nascença.
      Há-os com f´ridas esburacadas,
      Roxas de lírios, já gangrenadas.
      Uns de voz rouca, grandes bordões
      Quem sabe lá se serão ladrões!…
      Outros humildes, riso magoado,
      Lembram Jesus que ande disfarçado…
      Enjeitadinhos, rotos, sem pão,
      Tremem maleitas d’ olhos no chão…
      Campos e vinhas!… Hortas com flores!…
      Ai, que ditosos os lavradores!
      Olha, fumegam tectos e lares…
      Fumo tão lindo!… Branco, nos ares!
      Batem às portas, erguem-se as mães,
      Choram meninos, ladram os cães…
      Rezam e cantam, levam a esmola,
      Vinho no bucho, pão na sacola.
      Fruta da horta, caldo ou toucinho
      Dão sempre os pobres a um pobrezinho.
      Um que tem chagas, velho, coitado,
      Quer ligaduras ou mel rosado.
      Outro, promessa feita a Maria,
      Deitam-lhe azeite na almotolia.
      Pelos alpendres, pelos currais,
      Dormem deitados como animais.
      Em caravanas, em alcateias,
      Vão por herdades, vão por aldeias…
      Sabem cantigas, oraçõezinhas,
      Contos d’ estrelas, reis e rainhas…
      Choram cantando, penam rezando,
      Ai, só a morte sabe até quando!
      Mas no outro mundo Deus lhes prepara
      Leito o mais alvo, ceia a mais rara…
      Os pés doridos lhos lavarão
      Santos e santas com devoção!
      Para lavá-los, perfumaria
      Em gomil d’ ouro a bacia.
      E embalsamados, transfigurados,
      Túnicas brancas, como em noivados,
      Viverão sempre na eterna luz,
      Pobres benditos, amém, Jesus!…

      • JgMenos says:

        Esse bandos, que conheci em criança, à porta da casa dos meus avós, desapareceram há muito…obra do fassismo, cala a cambada, que convive tranquilamente com vagas de sem-abrigo!

        • POIS! says:

          Pois foi!

          O fassismo.

          Que tinha por divisa: “Eu fasso, tu fasses, eles fassem um lindo regime fassista”.

          Que, por vezes, obrava. Era a tal “obra do fassimo”.

          Sim porque, nesse tempo, já Salassar dizia: “O nosso fassismo é diferente. Mussolini só discurssa, eu fasso!”.

          Onde é que eu vi a frase? Penso que foi num azulejo que havia lá em casa, pendurado ao pé de duas andorinhas. Mas já o procurei e não encontrei. Deve ter-se partido.

      • Paulo Marques says:

        Fala-nos de quem deu a volta a isso, e quem volta a retirá-lo porque, afinal, foi um erro a quem não tem mérito para comer.

        • JgMenos says:

          Tenta traduzir para português básico.

          • Paulo Marques says:

            Não foi o teu amigo da cadeira que deu pensões a quem trabalha ou possibilidade de estabilidade a jovens mães solteiras, nem são os seguidores que querem que assim continue.

  6. Luís Lavoura says:

    Está bem que dá muito trabalho efetuar a mudança de casa. Mas não é esse trabalho para o seu próprio conforto? Ninguém as obriga a mudar de casa, e não será somente para “manter a tradição” que o fazem: fazem-no para seu próprio conforto, para não raparem tanto frio no inverno.

  7. motta says:

    Falar assim da vida…
    sem que seja da crise,
    de qualquer crise da moda,
    da guerra.
    das guerras que estão e das que não estão na moda,
    do futebol das arábias (felizmente ainda temos o da rua),
    dos políticos não sei quê,
    da corrupção,

    é obra!
    Obrigado Carla, dá-nos mais.

  8. Maria Aldina Lopes Brás says:

    Em relação aos invisíveis do presente, alguns eu vejo-os , mas parecem invisíveis para a maioria, vejo-os, por exemplo, doentes ao colo das mães, à porta do Centro de Saúde, a quem é dito simplesmente ” não há médico ” e lá voltam para trás.

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