Tanto mar

«Por causa das novelas percebemos perfeitamente o português do Brasil, mas o que temos mesmo pena é de não falarmos com o vosso sotaque”, disse António Costa.», “Público”, 24-04-2023

 

No dia em que Chico Buarque, um dos meus compositores favoritos, recebeu o Prémio Camões, soube que o primeiro-ministro do meu país, numa cerimónia oficial, confessou ao chefe de Estado do Brasil que nós, portugueses, temos pena de não falarmos com sotaque brasileiro. Pelo que ouço dizer, há brasileiros que defendem que o português correcto é aquele que é falado em Portugal, o que quer dizer que há muita gente a dizer disparates dos dois lados do mar. Pelo pouco que sei, o Brasil tem sotaques que nunca mais acabam, mas António Costa deve estar a pensar naquele que é usado nas telenovelas.

Entendamo-nos: eu e o meu país somos circunstâncias que acontecemos um ao outro, para sorte e azar de ambos. Não me acho nada de especial por eu ser eu e por eu ser português. Isto de ter uma nacionalidade é um casamento de conveniência que pode parecer de amor, mas é só um acaso, como é o caso do amor, a não ser para quem acredite no destino ou num deus que tenha tudo planeado, incluindo o momento em que havemos de tropeçar nos braços que queremos abraçar.

O Brasil, falado, cantado e escrito faz parte da minha vida. Tenho horas de músicas, dias de filmes, semanas de telenovelas, meses de livros, anos disto e daquilo. Nos últimos anos, tenho tido dezenas de alunos brasileiros, calorosos, engraçados, simpáticos, com direito a debates vivos sobre o ouro que roubámos ou não, com divertidos confrontos sobre pronúncia e escrita. Há muitos anos que não é possível ser-se português sem se ser brasileiro. E americano. E inglês. E francês. E italiano. E espanhol.

A minha língua, aquela a que pertenço, chegou-me por via oral, transformou-se em escrita, floresceu em literatura e, com todos os seus sotaques, é um membro da minha constituição, uma perna, uma víscera, um órgão vital. Lá porque é uma convenção, não deixa de parecer natural.

Entendamo-nos outra vez: a minha língua, o meu sotaque, o meu queijo da Serra, o meu cozido à portuguesa, o meu bacalhau à Brás, o meu D. Dinis ou o meu Eça são acasos, entre muitos outros. Não tenho, portanto, nenhum complexo de superioridade, mas sinto-me bem assim, sou esses acasos.

O que não tenho é necessidade de sentir ou de inventar um complexo de inferioridade que me leve a precisar de imitar outros, acreditando que isso fará com que seja melhor do que sou. É por isso que me chateia que usem “timing” em vez de “momento” ou que se tenha passado a dizer “fila” com medo do equívoco “bicha” ou que que o máximo seja “nota 10”. Chateia-me, aliás, um acordo ortográfico inventado por parolos da lusofonia e por arrependidos de uma colonização necessariamente violenta que precisaria de ser expiada à custa de consoantes mudas e necessárias.

Querer ser igual a outros é ser parolo. António Costa é um parolo, talvez porque sejamos um país de parolos. O 25 de Abril merece mais e melhor, merece “Tanto mar”.

 

Comments

  1. João Paz says:

    Excelente artigo Rui Nabais. É importante colocar os pontos nos ii como faz nesta publicação.

  2. Paulo says:

    Excelente. Como sempre

  3. Paulo Marques says:

    É natural, ganham por se curvar: a Bruxelas, a Washington, a Berlin, ao Vaticano, a Londres, ao capital, à finança, aos média, o que é mais um provincianismo para tentar agradar?

  4. Anonimo says:

    O Costa queria era ser cangaceiro. Ou coronér. No mínimo, ser bem-amado.

  5. Em vez de paiz é dar pau para semelhante cretino.

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