Lula da Silva e o Ocidente virtuoso

“É preciso que os Estados Unidos parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz. É preciso que a União Europeia comece a falar em paz. Pa’ gente poder convencer o Putin e o Zelenskyy de que a paz interessa a todo o mundo e a guerra só está interessando por enquanto aos dois.”

Foi esta a declaração de Lula da Silva que causou indignação cirúrgica, sobretudo entre a direita radical. Para a extrema-direita terá seguramente sido indiferente. O grosso dos seus aliados, como Orbán, Salvini ou Le Pen, sempre foram próximos de Putin e até receberam financiamento do Kremlin para a sua actividade política. E o circo já estava a ser montado. Já Montenegro foi cauteloso, e teve, a meu ver, sentido de Estado. Porque sabe, ao contrário dos restantes, que existe uma forte possibilidade de ser o próximo primeiro-ministro de Portugal. E, como tal, percebe a importância das relações diplomáticas com o Brasil.

É por casos como este que ainda há quem se agarre ao neocolonialismo. Achamos que os nossos problemas, da Europa, América do Norte e de mais meia dúzia de Estados vassalos a oriente, são os problemas de todos. E não são. Como não são nossos os problemas dos africanos, dos sul-americanos e dos asiáticos, com excepção de Taiwan, por questões que têm mais a ver com geopolítica do que com uma preocupação real com os anseios do povo taiwanês. A menos que o povo taiwanês sejam os semicondutores que se fabricam na TSMC.

Em África e na Ásia existem outras guerras. E, em alguns casos, com um nível de destruição muito superior ao da Ucrânia. Basta olhar para a Síria ou para o que se passa neste momento no Sudão. No continente americano não há nenhuma guerra em curso, mas o clima social, em muitos casos, está próximo da ruptura. Seja no Chile, seja nos EUA. Isto para dizer que a invasão da Ucrânia, que nos é próxima, e que envolve outras variáveis que nos dizem directamente respeito, importa tanto aos brasileiros como a guerra no Iémen importa aos europeus. Até porque a Arábia Saudita está metida naquilo e certas ditaduras não podem ser incomodadas. A russa que o diga, que fez o que quis durante anos sem que a virtude ocidental se virasse contra ela.

Eu não sei se Lula da Silva é putinista, como afirmou o presidente da IL. Se é, seria importante que Rui Rocha enquadrasse o putinismo de Lula no voto a favor da resolução da ONU de 23 de Fevereiro, que exige a retirada da Rússia de território ucraniano. Ou na declaração conjunta assinada com Joe Biden, onde os dois líderes criticaram a “violação da integridade territorial da Ucrânia pela Rússia e a anexação de partes do seu território”, que consideraram “violações flagrantes do direito internacional”. Cada um come os gelados que quer com a testa, mas esta não é a narrativa putinista. A um putinista exige-se, no mínimo, uma abstenção na ONU. E nunca, em momento algum, se toleraria a declaração assinada por Lula na Casa Branca.

O que aqui está em causa, a meu ver, é outra coisa: é a estratégia de colar a esquerda a Vladimir Putin. Como se Putin não fosse um político de extrema-direita que financia movimentos de extrema-direita na Europa. É verdade que alguma esquerda tem alinhado com a narrativa da ingerência ocidental como causa ou justificação da invasão, mas a grosso da esquerda não se revê nessa teoria. É, aliás, possível reconhecer essa ingerência e não aceitar a invasão. Porque ela existe. Sempre existiu.

Acontece que o Brasil, como qualquer país sul-americano, africano ou asiático que já foi invadido ou sujeito a um golpe de Estado fabricado pelos EUA, tem e terá sempre o pé atrás quando suspeita que, por trás de uma qualquer guerra, estão interesses de política externa norte-americanos. E os interesses norte-americanos nesta guerra são mais que muitos, a começar nas vendas de armamento e a terminar no comércio de gás natural para a Europa.

Acontece também que a política externa de cada Estado – e aqui voltamos ao neocolonialismo – não é nem tem de ser um reflexo dos interesses dos EUA e da sua esfera de influência, onde nos encontramos. O Brasil constrói as suas próprias relações internacionais. Faz parte do chamado Sul Global e dos BRICS. Não tem interesse na hegemonia norte-americana, mas numa realidade multipolar. E tem, claro, interesse em preparar a paz. Porque um conflito com as ondas de choque criadas pela invasão da Ucrânia prejudica, por exemplo, os interesses económicos do Brasil. Caso diferente é o dos EUA, cujas empresas do sector do armamento, importantes financiadores do bipartidarismo americano, bateram todos os recordes de capitalização bolsista desde o início da invasão. Este é um exemplo, mas existem outros, nomeadamente no sector da energia.

Seja como for, é, de facto, fundamental começar a preparar a paz. Lula tem razão a esse respeito. Mas nunca haverá paz enquanto a Federação Russa ocupar 1 centímetro de território ucraniano. Seja no Donbass, seja na Crimeia. E é também por isso que é fundamental existir um lado “não-alinhado” que promova o diálogo e as conversações para a paz, que dependem, a meu ver, da total evacuação do exército russo dos territórios ocupados. Até porque esta guerra é insustentável e uma eventual vitória de Trump (ou de DeSantis) em 2024 poderá significar o fim dos empréstimos e da cedência de armamento americano. Adiar a paz poderá ter consequências ainda mais desastrosas para a Ucrânia.

Existe ainda um lado de uma certa hipocrisia entre os mais virtuosos defensores da Ucrânia. Sobretudo entre aqueles que apoiaram a invasão do Iraque, o bombardeamento de Belgrado ou a ocupação da Cisjordânia por colonatos ilegais construídos por Israel à lei da bala. E não, a situação na Palestina não é assim tão diferente daquela que se vive hoje na Ucrânia. Israel nunca respeitou o plano de partilha, mas, curiosamente, os haters de Lula nunca pareceram muito interessados nas resoluções da ONU em que o apoio à Palestina é esmagador.

O grande problema dos críticos de Lula é o ódio contra aquilo que Lula também representa: uma esquerda que, no passado, usou os recursos da nação para tirar milhões da pobreza, para levar milhões da favela para a escola, e daí para a universidade, e que mostrou que é possível um caminho diferente, não necessariamente fundado no capitalismo selvagem.

Podem argumentar os seus críticos que Lula é corrupto. Mas não é isso que está aqui em causa. Se fosse, apelariam ao corte de relações com meio mundo, a começar por Washington. Ou Israel. Aliás, a corrupção reinante do Kremlin nunca incomodou nenhum destes puros, que só no ano passado, por conveniência, mudaram de ideias sobre o regime de Putin, que sempre foi assim.

Como já foi dito e repetido várias vezes nos últimos dias, aquilo que Lula disse não foi assim tão diferente daquilo que disse Macron. A diferença, claro, é que Macron é um filho pródigo do Ocidente dito liberal: banqueiro, defensor dos direitos da elite que nos comanda, arrogante e sem escrúpulos. Os virtuosos adoram-no e nunca ousariam boicotá-lo. E motivos não faltam.

Também o Papa Francisco tem repetidamente insistido na importância de trabalhar para a paz. Em Março, afirmou que a guerra na Ucrânia está a ser conduzida pelos interesses de vários impérios, que não apenas o russo. Em nome da coerência, políticos eleitos como Rui Rocha ou André Ventura deviam estar já a preparar uma acção de protesto para as imediações das Jornadas Mundiais da Juventude. Mas não o farão.

Lula da Silva lutou contra a ditadura. E livrou-nos de um pesadelo chamado Bolsonaro. Se devia discursar no 25 de Abril? Acho que não. Não por achar que não tenha credenciais, que tem, mas por entender que deve ser dado palco aos protagonistas da revolução que temos a felicidade de ainda ter entre nós. Mas estas demonstrações de virtude já não enganam ninguém. Principalmente da extrema-direita que se prepara para receber a maior concentração de putinistas que este país alguma vez viu. Se dependesse deles, a Ucrânia já estaria anexada.

Comments

  1. Paulo Marques says:

    O sul global tem que lidar com mais uma subida do custo da moeda do mercado, com dívidas impagáveis a piorar pelo primeiro, com incapacidade de reagir graças à aplicação de ideologia do FMI, Banco Mundial, e certas ONGs, com falhas nas cadeias de produção, com efeitos devastadores das alterações do clima, e ainda com o abandono no combate à pandemia. Quando não guerra, ou pelo menos instabilidade, frequentemente por ingerência estrangeira.
    É natural que não sejam portugueses e tenham pouca confiança em quem só quer piorar os problemas reais, porque é só isso que sabe fazer. Muito menos por mais nation building a régua e esquadro preocupado com as fronteiras e nada com a auto-determinação e estabilidade, aguentada por mais um governo em que tudo o que é estrangeiro é para varrer.
    O oriente e, especialmente, a Crimeia plenamente ucranianas em nome da auto-determinação dos direitos humanos só se for para rir.

  2. estevesayres says:

    Sabemos que a comunicação-social burguesa não publica:
    ( “)A visita de Lula, a paródia da democracia burguesa e a guerra inter-imperialista

    A visita de Lula da Silva e as suas declarações e posicionamento sobre a guerra inter-imperialista, cujo palco, a Ucrânia, definido e escolhido desde 2014 (sabe-se agora que os acordos de Minsk só foram estabelecidos para ganhar tempo para a preparação desta guerra) desencadeou grande agitação no parlamento burguês, qual pântano em falência acelerada, afundando-se dia-a-dia, até à próxima implosão.

    Inicialmente o convite feito por Marcelo a Lula da Silva, sem consultar o parlamento, tinha como objectivo principal retomar, após quatro anos, as reuniões/cimeiras entre Portugal e o Brasil interrompidas durante a presidência de Bolsonaro, alargando-se a uma participação nas comemorações do 25 de Abril no parlamento.

    De repente, a ideia laboriosamente construída, com a preciosa ajuda dos media, de que a maioria do mundo estava alinhada com os Estados Unidos, a hiperpotência dominadora, com a sua ordem e a sua moral hipócrita, começa a perder terreno com os “não alinhados”, que, note-se, constituem dois terços do planeta, a alinharem-se e a oporem-se aos Estados Unidos! Não são só os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e também a África do Sul), mas também o chamado Sul Global, com destaque para a Africoásia, num alinhamento que poderá ultrapassar o económico. Tudo indica que os Estados Unidos se deixaram ultrapassar e não conseguiram evitar a formação de blocos económicos e também militares que desafiarão a sua hegemonia, na Eurásia, incluindo a África.

    Que fique claro: não estamos a defender a posição de Lula da Silva nesta luta de imperialismos, que nos está a conduzir a uma terceira guerra altamente mortífera e destruidora. A nossa posição sobre esta questão é bem clara desde o início e está divulgada em vários artigos publicados no Luta Popular on line. Mas, não deixa de ser um progresso/aspecto positivo, a assunção de Lula da Silva do não envio de armas e soldados para esta guerra, assim como a denúncia da intervenção dos Estados Unidos, da Europa e da Nato no conflito. Pelo menos, tem o mérito de desencadear a discussão, de terminar com a posição única divulgada e fomentada de forma agressiva, sistemática, manipuladora, parcial e degradante pela imprensa ocidental.

    Por outro lado, não podemos deixar de desocultar o que subjaz a tal algazarra histérica, em que se destaca a direita formal, mas não só, já que “socialistas” também se mostraram chocados e desorientados, querendo retaliar. Na verdade, e de acordo com o que foi e é ampla e constantemente divulgado pelos meios de comunicação, fabricou-se com todo este ruído, sabujice e tiques de colonizadores e lacaios dos Estados Unidos a ideia de não permissão desta visita; todos unidos quanto à importância da data do 25 de Abril! Até o Chega invoca a importância da data para não querer o Presidente do Brasil no parlamento português. Finalmente, todos de acordo com o significado do 25 de Abril!!

    O apelo aos instintos primários, a um nacionalismo bacoco, à arrogância colonialista, mostraram o descontrolo desesperado dos que vieram a terreiro, em primeiríssimo lugar defender a voz do dono, neste caso, dos Estados Unidos, neste conflito.

    Mas, perguntamos, a maioria do parlamento não considerou a vitória tangencial de Lula da Silva contra o fascista Bolsonaro uma vitória da democracia? Agora, Lula deixou de ser um democrata e passou a ser persona non grata para Portugal? E não vamos falar aqui de política externa, que parece ser um aspecto que o parlamento desconhece. Sim, porque também não podemos esquecer que se Portugal acolhe centenas de milhares de brasileiros (233.138), o Brasil, por sua vez, também acolhe milhares de portugueses.

    A imprensa ocidental, manipuladora da opinião pública também tentou fomentar a ideia de que a guerra é necessária à paz. Sim, mas essa é apenas meia verdade. Tal acontece com a luta revolucionária para esmagar o opressor e que, certamente, ocorrerá a longo prazo no decorrer deste conflito. Mas, não é, claramente, o caso. A natureza desta guerra é de rapina, saque, expansão e repartição de riquezas, domínio e opressão do mundo, nem que para isso se entre numa escalada de destruição e sofrimento inauditos, com o recurso a armas nucleares. O que queriam os EUA ao promoverem um golpe de estado na Ucrânia e ao colocarem títeres no seu governo senão as riquezas desse país (negócios feitos com os governos títeres saídos de Maidan assentaram na rapina do gás e outras riquezas num Donbass livre de pessoas, ou seja, os habitantes do Donbass, considerados sub-humanos pelos títeres dos yanques em Kiev, poderiam ser expulsas de onde viviam sem qualquer indemnização, para dar espaço à extracção das riquezas existentes no local). E o que é que a camarilha de Moscovo disputa, a pretexto da protecção das pessoas do Donbass, senão as riquezas que a partir de Maidan deixaram de estar ao seu alcance? Mas este aspecto regional está contido num outro mais geral, é a primeira fase de uma guerra maior que oporá os dois imperialismos: os Estados Unidos e a China. O que estamos a assistir é aos preparativos e alinhamentos para essa guerra.

    Neste momento, os Estados Unidos, Europa e Nato continuam a despejar, quase diariamente, quantidades gigantescas de armamento e dinheiro para alimentar esta guerra, sempre em nome da paz!

    Invocar a paz é um dos lemas dos Estados Unidos, que não terá pejo em abandonar, como fez, de forma vergonhosa e cobarde no Afeganistão, aqueles que usou para os seus desígnios imperialistas. E talvez, nessa altura fale em “negociações de paz”. Não nos admiremos que ao mesmo tempo venha recuperar a necessidade de acordos de paz e segurança global, que enunciou na sua cruzada contra o “terrorismo”.

    Manter o seu território nacional e as suas bases invulneráveis, fazendo as guerras nos outros, é o primeiro objectivo vital dos Estados Unidos. E se uma guerra civil começar dentro das suas fronteiras?
    Será que a pode evitar?

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