Abdelkrim El Khattabi e a Guerra do Rif

“O Rif é um caldeirão a ferver. Quem puser lá a mão queima-se.”

Em 1921 o Protectorado Espanhol de Marrocos iria ser abalado por uma guerra impiedosa levada a cabo pelas tribos Rifenhas e do País Jebala e Gomara, que ficou conhecida como a Segunda Guerra do Rif.

O Exército de África e a Legião Espanhola sofreram derrotas esmagadoras e, em desespero, os espanhóis utilizaram armas químicas em grandes quantidades sobre aldeias inteiras.

Apesar da superioridade numérica e de armamento do exército de Espanha, o Protectorado esteve à beira do fim, perdendo grande parte do seu território, que em 1925 se resumiu às principais cidades.

A revolta dos guerrilheiros Rifenhos só foi esmagada em 1926, quando a França entra na guerra com uma força de 300.000 soldados comandados pelo general Pétain, que incluía tropas senegalesas e a Legião Estrangeira, que se junta aos 250.000 soldados espanhóis comandados pessoalmente pelo ditador Miguel Primo de Rivera.

Apesar da derrota dos rifenhos, os sucessos militares dos mujahidin do Rif foram decisivos na formação de uma consciência nacionalista marroquina, e deveram-se não só à coragem e determinação do povo Rifenho, como também ao génio político e militar do seu líder, um berbere oriundo da tribo dos Beni Urriaguel chamado Abdelkrim El Khattabi.

A decisão espanhola de embarcar na aventura marroquina resulta do vazio deixado pela perca das suas últimas colónias ultramarinas, Cuba, Filipinas e Porto Rico, como forma de aliviar tensões internas e de encontrar um novo ideal.

Mas para muitos “a guerra de Marrocos foi o resultado de uma ambição desmedida, de uma equivocada, orgulhosa e mal definida política de expansão territorial (…).”

Nos finais do século XIX Espanha ocupava sensivelmente os mesmos territórios que hoje ocupa no Reino de Marrocos, concretamente Ceuta, Melilla, as ilhas Chafarinas e o Peñon Velez de la Gomera. Apesar da presença espanhola ter beneficiado de alguns tratados celebrados com o sultão de Fez, as tribos do Rif nunca a aceitaram, tendo sempre existido escaramuças em redor das áreas ocupadas.

“As cidades eram a fronteira quente, o pólo de atracção dessa guerra sem fim.”

Em 1893 inicia-se a “crise de Melilla”, quando 6.000 guerrilheiros representando 39 tribos rifenhas atacam a cidadela da cidade. Os combates alastram às aldeias, montanhas e praias circundantes e o conflito generaliza-se com a chegada de reforços de Espanha e com o envolvimento do sultão de Fez. A guerra dura um ano e termina com uma paz negociada.

A crise de Melilla, também conhecida como a Primeira Guerra do Rif, é o aviso de que os Rifenhos não aceitarão a ocupação do seu país por estrangeiros.

Mas Marrocos está na mira dos interesses europeus. Espanha e França têm planos para a sua partilha e a Inglaterra dá o seu aval, não só porque teme uma invasão do país pela Alemanha, como porque a França lhe reconhece o direito de governar o Egipto.

O Kaiser alemão Guilherme II desembarca em Tanger em 1905, mas as aspirações alemãs em Marrocos são negociadas com a França e trocadas por interesses na África central.

Em 1911 Espanha e França invadem as zonas que já haviam acordado e no ano seguinte assinam com o sultão Abdelhafid o tratado de Fez que cria os protectorados Espanhol e Francês de Marrocos. Como parte integrante do tratado, a Alemanha reconhece os protectorados em troca do actual território da República do Congo e parte dos Camarões. O tratado estabelece ainda uma zona de administração internacional na cidade de Tânger.

O Protectorado Espanhol de Marrocos integra dois territórios _ no Norte as regiões do Rif e do País Jebala e Gomara, e no Sul a região de Tarfaya.

Numa primeira fase a ocupação espanhola do território do Norte não é efectiva, resumindo-se apenas às cidades. Em 1920 o general Dámaso Berenguer inicia a ocupação do Rif profundo, mas não passará de Chefchauen.

Muhammad Ibn ‘Abd al-Karim al-Khattabi nasceu em 1882 em Ajdir, nos arredores da cidade de Al-Hoceima.

Frequentou a Universidade Qarauyine de Fez e durante três anos fez estudos militares e de direito em Granada. Entre 1908 e 1915 foi jornalista em Melilla e posteriormente funcionário da administração espanhola como juiz.

Abdelkrim provinha de uma família de tradição espanhola. O seu pai era um dos chefes do Partido Espanhol de Al-Hoceima.

Abdelkrim considerava-se descendente dos bascos. Aliás são notáveis as semelhanças entre o Tamazight e o Euskera e vários são os antropólogos que estudam as afinidades raciais entre berberes e bascos.

Em 1917 Abdelkrim foi preso por pôr em causa a presença de Espanha no Rif. Dois anos depois escapa-se da prisão e assume o papel de líder da resistência à ocupação espanhola.

Começa a reunir as tribos para organizar o Exército do Rif, que numa primeira fase contava com cerca de 15.000 guerrilheiros, mas que no auge da guerra terá atingido os 80.000 efectivos. Exército com uma moral elevada e grande motivação, mas com armamento muito escasso e sem preparação militar. Dizia Abdelkrim que um rifenho vale por 6 espanhóis e por 10 franceses.

Do outro lado estava o Exército de África espanhol, constituído principalmente por jovens inexperientes oriundos das classes baixas, por regimentos indígenas chamados “Moros Regulares” e pela Legião Espanhola ou “Tercio de Extranjeros”, estes últimos comandados pelo general Francisco Franco e com reputação de extremamente cruéis. As forças espanholas seriam inicialmente cerca de 50.000 homens, posteriormente aumentados para mais de 250.000, bem equipadas e apoiadas pela marinha de guerra e a aviação.

Em 1921 Abdelkrim declara guerra a Espanha, iniciando ataques em força contra as tropas espanholas entrincheiradas em fortificações na região de Melilla. As vitórias dos rifenhos são esmagadoras.

Primeiro Albarrán, depois Sidi Driss e logo Igueriben. Estas três derrotas isolam a base de Annual, que fica sem abastecimentos. No pico do verão, os soldados espanhóis desesperam. Sem água, bebem a própria urina.

A batalha de Annual foi o maior desastre para Espanha. 16.000 mortos, 24.000 feridos e 700 prisioneiros; 150 canhões e 25.000 espingardas capturados.

Seguem-se a base da legião em Ben Tieb, depois Batel e Dar Drius.

Os sobreviventes refugiam-se em Monte Arruit, na qual os espanhóis acabam por sofrer 3.000 baixas.

Em 1922 Abdelkrim proclama a República do Rif a partir do seu quartel-general em Targuist e é eleito seu presidente.

Melilla é a principal base da guerra. A população civil foge para Espanha, procurando segurança, e a cidade fica entregue aos soldados e às prostitutas, e a todos os géneros de vícios. Nos cafés compra-se o kif, a morfina e a cocaína.

“Melilla a silenciosa, Sodoma e Gomorra, a capital de todos os vícios coloniais, do álcool e do jogo, dos desfalques e enredos.”

Ainda hoje não é clara a razão pela qual Abdelkrim não conquistou Melilla. Se sobrestimou a sua guarnição, que era de apenas 1.800 homens, se temeu que toda a Espanha acorresse em seu auxílio ou se desejava deliberadamente manter a cidade em mãos espanholas.

A Guerra do Rif criou também os seus renegados. Soldados espanhóis que desertavam e se convertiam ao Islão, passando a viver com os rifenhos. Alguns deles, sobretudo os mais politizados, lutariam ao lado de Abdelkrim. É famoso o caso de um alemão de nome Josef Klemps, conhecido como o Peregrino Alemão, um artilheiro desertor da Legião Estrangeira francesa. Convertido e casado com quatro mulheres, este “aventureiro romântico” torna-se o chefe da artilharia de Abdelkrim, que lhe chama “o meu grande artilheiro”.

A ofensiva rifenha dirige-se para o País Gomara, reconquistando Chefchauen, a Cidade Santa.

Na zona Ocidental do Protectorado, no País Jebala, a actividade dos guerrilheiros aumenta, sucedendo-se as emboscadas na estrada entre Ceuta e Tetuan.

As derrotas no Rif, e principalmente o desastre de Annual estão na origem da deposição do rei Afonso XIII e da instauração da ditadura de Miguel Primo de Rivera, que irá dar um novo impulso ao conflito.

Em 1924 Espanha retira para as zonas costeiras, onde as tropas podem ser abastecidas, e para as principais cidades, como Ceuta, Tetuan, Arzila, Larache, Melilla, Nador e Zeluan.

Nesse ano Abdelkrim pede ao sultão Mulay Yussef que se junte à guerra para lutar pela independência total de Marrocos, mas o sultão recusa-se a defrontar as potências coloniais.

Espanha foi um dos primeiros países a utilizar de forma indiscriminada armas químicas contra a população civil, tendo utilizado na Guerra do Rif, entre outras, o gás mostarda.

Inicialmente, em 1923, o gás mostarda era fornecido pelos alemães, mas no ano seguinte já era fabricado nos arredores de Melilla. Cada bomba de 100 kg transportava 15 litros de gás e as bombas eram lançadas de avião. Espanha utilizou na guerra 127 bombardeiros “Farman Goliath” que lançavam uma média de 1.680 bombas por dia.

Os alvos eram preferencialmente civis, fossem aldeias ou “souks”, estimando-se que no total tenham sido lançados 12.000 kg de gás mostarda, tenham morrido gaseadas cerca de 100.000 pessoas e mais de 1.000.000 tenha ficado afectada para o resto da vida.

Para além dos ataques contra civis foram lançadas grandes quantidades de armas químicas nos rios, nascentes e poços, como forma de contaminar a água e as culturas agrícolas.

Em 1925 o Protectorado Espanhol de Marrocos está reduzido a duas zonas situadas nos seus extremos Poente e Nascente, nas quais as tropas se confinam às áreas urbanas, e onde se mantêm activas bolsas de guerrilheiros.

Abdelkrim ataca as posições francesas junto ao rio Uarga e ocupa áreas do Protectorado Francês, ameaçando as cidades de Fez e Taza. Foi o grande erro de Abdelkrim. França entra na guerra e as várias frentes de combate estendem em demasia as suas linhas, dispersando as tropas rifenhas.

A entrada da França na guerra foi decisiva para o seu desenlace. As tropas comandadas pelo general Pétain, num total de 300.000 efectivos, eram bem treinadas e disciplinadas e contavam com efectivos da metrópole, Norte de África, Senegal e com a temível Legião Estrangeira.

França e Espanha organizam então o desembarque da baía de Al-Hoceima, envolvendo meio milhão de homens. Na vanguarda do desembarque vai o Tércio aos gritos de “Legionarios a luchar, legionários a morir” e “Viva la muerte”. No seguimento do desembarque a cidade de Ajdir, terra natal de Abdelkrim, é completamente arrasada pela Legião Espanhola. Nos confrontos subsequentes ao desembarque as derrotas de Espanha são vingadas com violência.

As forças do Rif ainda resistiram por mais um ano, mas em 1926 Abdelkrim rende-se aos franceses. Apesar disso, subsistem focos de resistência isolados nas regiões de Bab Taza, Souk El Tleta e Targuist, que levarão um outro ano a dominar.

A Guerra do Rif termina oficialmente em 1927.

Abdelkrim é exilado na ilha de Reunião, onde permanece 20 anos. Quando, em 1947, faz escala no Cairo a caminho de França, escapa-se e pede asilo no Egipto. Neste país presidirá ao “Comité Nacional de Libertação de Marrocos”, que pretende representar todo o povo marroquino na sua luta pela independência, e que denuncia na Sociedade das Nações a utilização de armas químicas pelo exército espanhol contra a população civil do Rif.

Abdelkrim El Khattabi morre no Cairo em 1963.

Sobre a Guerra do Rif Abdelkrim escreveu em 1922 uma carta ao director do jornal espanhol “La Libertad” na qual dizia:

“O Rif não combate os espanhóis nem sente ódio pelo povo espanhol. O Rif combate esse imperialismo invasor que quer arrancar-lhe a sua liberdade à força de sacrifícios morais e materiais do nobre povo espanhol. Peço-lhe que manifeste ao seu povo que os rifenhos lutam contra o espanhol armado que pretende negar-lhe os seus direitos, e têm as portas abertas para receber o espanhol sem armas como técnico, comerciante, industrial, agricultor e operário”.

Bibliografia:

LEGUINECHE, Manuel . “Annual, el desastre de España en el Rif, 1921” . Alfaguara, Madrid 1996

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  1. […] O colaboracionismo do Glaoui chega ao ponto de enviar em 1926 para o Rif 1.000 Harkas para combater as forças do nacionalista Abdelkrim El Khattabi. […]

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