Os Portugueses, por AP, e Alberto Pimenta, por SB

Alberto Pimenta - luz, sombra, brilho. © Sandra Bernardo | Direitos reservados

 

“Os portugueses não formam uma sociedade porque não são sócios uns dos outros. Tomemos os exemplos mais corriqueiros. Na cidade velha, vai-se pela rua e pode-se apanhar com sacos de migas de pão ralado, atirados aos pombos, na cabeça. E a rua está cheia de cagadelas de cão, coisa que não se vê em mais cidade nenhuma, porque cada um entende que o espaço público se pode sujar à vontade. Lisboa é habitada por uma horda que usa fato e gravata e anda de automóvel, mas que não chegou sequer ao patamar mínimo de civilização urbana. Começa-se sempre de cima para baixo. A Lisboa 94, com a sua falta de ideia, fez várias coisas em cima sem haver nada em baixo, confundiu arte com cultura. A cultura começa nas ruas onde se pode andar, no ambiente cuidado, nos jardins tratados, que não existem.

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Há um total desprezo do próximo, uma falta de noção dos direitos e deveres urbanos civilizacionais. Soube agora de um caso que se passa num prédio normal do centro da cidade. Há alguém que guarda a moto do filho de família no patamar entre o terceiro e o quarto andares e, quando lhe vão dizer que não o pode fazer, essa gente que é licenciada fecha a porta, dizendo: «A moto é minha, eu faço o que eu quero!» Tal e qual como o sapateiro que bate no filho e diz: «O filho é meu, eu faço o que quero!». É a sociedade do «salve-se quem puder». A maior parte das discussões que se geram em bichas, em lugares públicos onde se reclama um direito, resulta da falta de noção muito exacta que qualquer alemão, francês ou italiano tem dos seus direitos e deveres. Aqui é tudo uma «questão particular». Passa a não ser uma sociedade organizada mas um clã. É simpático, de repente, encontrarmos uma grande humanidade e intimidade onde menos esperávamos. Sabe bem mas o preço é caro, implica um dia-a-dia desgastante, onde tudo funciona improvisada e desastradamente. Nem se pode andar pelas ruas porque os carros ocupam os passeios. São insignificâncias que vão criando e alimentando quotidianamente um mal-estar, um cansaço, uma perda de energia. Quando ando pela Baixa duas ou três horas, começo a sentir um esgotamento de tipo espiritual, ao contrário do que acontece em qualquer cidade europeia em que fico mais alerta, enérgico e cheio de ideias. Aqui, começo a arrastar os pés e a andar em passo de procissão, que é como fazem os portugueses, um pouco vergados, dai a metáfora de trazer um peso nas costas. Há, de facto, um peso qualquer que está lá dentro, nas costas do espírito. Este país é como uma eterna pequena constipação.
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E esta fatídica vocação para as pantufas… Conta-se que, depois do terramoto, alguns aristocratas que ficaram sem palácio instalaram-se em barracões onde é hoje o Rato, com grande promiscuidade e as couvinhas lá atrás. Quando os palácios ficaram prontos, não queriam sair, pois era ali que lhes sabia bem. Isto define a mentalidade portuguesa.
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A arte em Portugal não tem a ter com a vida. O museu e o espectáculo são coisas que se passam em lugares fechados, com horário e um culto feito em grande parte de snobismo e de obrigação social. Daí o grande desconforto dos artistas em Portugal, uma espécie de marcianos, porque aquilo que fazem não tem nada a ver com os interesses da sociedade. Em Itália. o cidadão mais humilde tem uma intuição, um conhecimento e uma veneração pela arte que aqui terá talvez o equivalente na veneração pela Nossa Senhora de Fátima. Até coincide porque é a veneração por um desconhecido, pelo que está para além da razão. Se não houvesse motivos exteriores, não creio que fizesse falta a quem quer que fosse ir a exposições de pintura, ao teatro ou à ópera.
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Há um egoísmo perfeitamente catastrófico que caracteriza os portugueses. No seu dia-a-dia, desde que tenha resolvido o seu problemazinho e possa comer o seu bifinho com batatas fritas ou o seu bacalhauzinho, já tira dai um prazerzinho que o deixa satisfeito. O Eça usou todos esses diminutivos com razão, porque tudo é pequeno, da dimensão ao espírito. Satisfazem-se com pouco.
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Outra característica dos portugueses é ter medo do risco, podem cair no ridículo, que fica muito mal. Ora para fazer grandes coisas, é preciso arriscar cair do trapézio. Mas os portugueses preferem trabalhar com rede ou então a um metro do chão. Os Descobrimentos foram uma necessidade porque essa gente que vinha do Norte do Pais, a cair de fome e a morrer pelo caminho, não tinha outra hipótese. E não esqueçamos os mercenários. Os relatos deixam-nos imaginar o tormento daquelas viagens, com doenças e sem comida, em condições de puro desespero. Depois, lá veio a mitificação histórica. Obviamente haveria alguns, poucos, a começar pelo infante D. Henrique, que teriam o seu projecto de alargar a Terra, de chegar a qualquer lado e de tirar lucro, que é o que faz correr o homem. O Camões diz textualmente, n’Os Lusíadas, que «nunca houve nação, nem bárbara, que prezasse tão pouco as artes como a portuguesa». E o padre António Vieira dizia, naquelas etimologias divertidas, que o mundo é mundo porque, por antífrase, é imundo tal como a Lusitânia se chama assim já que não deixa luzir ninguém por causa da inveja. E podíamos continuar com o Eça, com o António Nobre, com os que reflectiram porque tiveram oportunidade de comparar… (…).
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Vivi na Alemanha muitos anos e pude constatar que o mito do amor ao trabalho dos Alemães é falso. Não gostam de trabalhar, mas sabem que e preciso. Por isso, fazem-no o mais eficientemente possível. Durante o trabalho, os alemães não conversam sobre futebol nem as alemãs falam de meninos, como aqui. E fora dele é tabu falar sobre isso. Ao contrário de Portugal, onde se passa o almoço a falar do trabalho, uma paranóia perfeita.
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Enquanto a Europa é urbana e civilizada há muito tempo, em Portugal o crescimento faz-se por saltos muito grandes. Temos a ideia de que o progresso é deitar fora o que há e substituir pelo novo, o que mostra que não o conseguimos integrar. Em cada época, há elementos que definem o novo-riquismo. No século XVI, o embaixador do Papa escrevia para Roma a dizer que não entendia porque é que o barbeiro, um homem muito pobre, tinha um pretinho para lhe carregar a bacia quando ia fazer a barba a casa do cliente. Na Segunda Guerra, houve o boom dos novos-ricos do volfrâmio e dizia-se que eles comiam a sardinha assada com pão-de-ló. Hoje continua e, apesar do novo-riquismo destes anos em que já somos europeus, basta por o pé para lá da fronteira para perceber que somos cada vez menos em termos culturais. Temos o mito das melhores praias, dos melhores vinhos, mas quanto tempo vão durar? Há terrenos próximos de Lisboa, na zona do Ribatejo, que estavam classificados para agricultura exclusivamente. Há três ou quatro anos saiu um decreto que permite utilizá-los para campos de golfe desde que sejam reconvertíveis. Daqui a 15 anos, comeremos bolas de golfe em vez de couves…
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Os Ingleses, mesmo lá no extremo do Sahara, continuam a manter a nacionalidade e a beber o chá das cinco porque têm uma personalidade forte. Mas um português na Alemanha, ao fim de cinco anos é alemão, e no Japão torna-se um autêntico japonês. Tem uma capacidade espantosa de adaptação, uma qualidade que lhe facilita a vida, mas que é sinal de uma personalidade fraca. O nosso racismo é económico. Tratamos com servilismo os que têm mais dinheiro que nós, embora haja quem diga que isso é a cordialidade do português a acolher os estrangeiros.

Tal como há quem diga que a língua portuguesa é o espanhol sem ossos. Compare-se o «quero-te» com o «te quiero»: enquanto num a entoação morre no fim, no outro a afirmação é evidente logo no som. É como se nem na língua tivéssemos coluna vertebral.

Portugal ficou a meio caminho entre o Norte de Africa e a Europa. E não se consegue definir. É pobre combinar as coisas sem definir uma ideia e uma identidade próprias. Não há, em Portugal, politica no sentido autêntico da palavra, uma ideia de sociedade para dar forma ao Estado. Não há partido que a tenha, excepto, talvez, o comunista, mas não é uma ideia própria. Os políticos portugueses, tal como os artistas, são preguiçosos, pouco competentes e bastante diletantes”.

Alberto Pimenta
Diário de Notícias, 29 de Janeiro de 1995

Comments

  1. Ana Cruz says:

    Excelente descrição do que é ser português. Equivalente só Alexandre O’Neill. Quem não se enquadra na “tipologia” descrita parece ser considerado como atípico ou “alemão”. No fundo, para se ter identidade em Portugal é necessário partilhar do pântano geral. Para se ter coluna vertebral é necessário ser estrangeiro em Portugal. Ser português sem ser “português”, no pior sentido do termo, é ser considerado um erro cultural e geográfico e implica um acto de resistência quotidiana. Por vezes, apetece pedir exílio. Motivo: não querer colaborar com a insanidade geral…em que apenas alguns (poucos) se salvam.

  2. metalurge says:

    Excelente explicação do que é ser português.
    Para mim ser portuga é: enquanto houver um bom tinto e uma sardinha assada,está tudo bem… o resto que se lixe

  3. Amadeu says:

    Excelente texto. Não sou dos que gostam de cascar no portuga, mas o seu texto tem imensas verdadinhas que me deixaram um sorriso nos neurónios e alguma vergonhasinha de eu também ser assim. Ditas de uma maneira muito elegante. Obrigadinho.

  4. maria celeste ramos says:

    Mas ontem vi na TV um emigrante da minha idade que esté “lá fora há 40 anos” e não resistiu e pôs-se num choro convulso – tem saudades da sua terra perto de Fátima – a imagem de tantos emigrantes que nem pobres podem ser em Portugal – é cruel a análise que é feita do país – por mim falaria entes dos governos de direita e pior deste último – ate perdem o cabelo de tanta insanidade moral e espiritual porque de intelecto têm um monte de merda

  5. MAGRIÇO says:

    Estou absolutamente de acordo com esta descrição do português médio. Só não consigo compreender como a autora (ou o autor) pretendeu confinar a Lisboa uma prática que é nacional. Conheço bem todo o país e, embora correndo o risco de ferir algumas susceptibilidades regionalistas, posso afirmar que, infelizmente, há por cá burgos muito piores que Lisboa, embora isso não me sirva de consolação. Há cerca de 2 anos subi o Douro de barco até à Régua e resolvi regressar de comboio. Quando entrei na carruagem fiquei com a sensação que, de repente, tinha chegado ao norte de África: havia cerca de uma dezena de pessoas e nem um único lugar, todos ocupados por alcofas, sacos, caixas e todo o arsenal próprio de uma feira que, vim a saber, era a origem de tão singular mescla. Nas redes de bagagem nem um único saco. No chão, toda a espécie de lixo, desde cascas de fruta e de amendoins até papéis e garrafas vazias. Nunca vi isto nas linhas que servem Lisboa.

  6. tkulyture? գիշեր says:

    A cultura não começa nem acaba, a cultura faz parte de todos os Homo ludens, pode achar-se que é uma cultura de merda e ser uma cultura de élite. ou vice-versa antropologicamente é muito variável.
    Deitar comida para o chão agrada aos deuses e aos antepassados que reencarnaram em formas ditas com menos karma.

  7. tkulyture? գիշեր says:

    uma característica das moscas putogoesas tal e tal é serem especialistas a falarem das restantes moscas
    a minha merda bóptima as merdas que elas fazem deus meu (baaal zebute o senhor das moscas …

    deveres urbanos e civilizacionais…atirar os débeis mentaes do penhasco abaixo…esparta uns centos por ano
    putocale nem sobrava um como dizem as russas e ucranianas….

  8. Excelente Alberto Pimenta. E excelente foto de Alberto Pimenta. Esta e as outras…

  9. lopez says:

    Muito bom! texto. vou imprimi-lo para uma leitura mais aturada.

  10. Paula Silva says:

    Para mim, a vida em Portugal é cada vez mais frustrante. Não consigo perceber como quase todos aceitam o que aquí se passa como se se tratasse de uma fatalidade e é claro que nunca mudaremos, porque a maior parte de nós se sente perfeitamente satisfeita com o que se passa no país. Desde que haja comida, bebida e umas romarias ou futebol para entreter, está tudo bem. Desculpem, mas isto não é adaptação, é falta de coragem e preguiça, sim, penso que é também preguiça, porque lutar dá trabalho, cansa.
    Já desisti de mudar seja que comportamento for, por mais incivilizado, porque não vale a pena, é tarefa interminável e ainda nos gozam por cima. Angustia-me a ideia de não conseguir sair daqui antes de morrer e não poder testemunhar um outro tipo de vida.
    Obrigada por me darem a conhecer este fantástico texto do Alberto Pimenta. Pensei que era a única a sentir assim.

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