Proibição do véu integral em França

“A defesa patrimonial da laicidade é levantada pelos gauleses contra as mudanças culturais. Mas é difícil lutar contra essas mudanças quando trazidas pelos próprios franceses. Já não podemos brincar ao nós e eles quando são francesas convertidas ao Islão a usar o niqab”.

Muito se tem falado em relação á presença Islâmica na Europa, sobretudo em França, sobre o facto de os imigrantes tentarem impor os seus costumes enquanto estrangeiros mal agradecidos á sociedade ocidental, a qual os acolheu benevolentemente.

Vou-me centrar em França, país onde o debate está na ordem do dia e que personifica a meu ver a contradição ocidental entre tolerância e xenofobia.

Em primeiro lugar convém lembrar que a população de origem magrebina existente em França resulta do facto de os franceses terem colonizado os seus países durante décadas, concedendo posteriormente a esses povos o direito de viverem e trabalharem em França.

Em França, onde fazem o trabalho sujo que os franceses não querem fazer e onde pagam os seus impostos, que contribuem para pagar as reformas dos franceses.

Hoje em dia os franceses de origem magrebina são aproximadamente 5.000.000 de pessoas, quase 10% dos 65.000.000 de franceses, cidadãos de pleno direito desse país e maioritariamente muçulmanos.

Algumas das mulheres que professam a religião muçulmana, cerca de 2.000, usam o niqab, um véu que esconde a face, associado ao hijab ou ao xador, que lhes cobrem a cabeça e o pescoço.

Essas 2.000 mulheres representam cerca de 0,003% da população de França e 0,08% do total de mulheres muçulmanas francesas.

É deste “problema” que estamos a falar, ainda por cima com uma nuance _ a grande maioria dessas mulheres são jovens de origem magrebina nascidas em França ou francesas convertidas ao Islão.

Segundo as estatísticas existem cerca de 60.000 franceses convertidos ao Islão, a maioria dos quais mulheres, número que aumenta anualmente em cerca de 3.600 cidadãos.

Para “resolver este problema” o governo de Sarkozy vai apresentar um projecto de lei, que para muitos dificilmente terá pernas para andar do ponto de vista jurídico, pretensamente para defender a dignidade da mulher muçulmana.

Esse projecto de lei contém, de entre vários artigos, dois fundamentais:

O artigo 1 que pune com uma coima de 150 euros o uso de qualquer adereço destinado a dissimular a face no espaço público, podendo a coima ser substituída por um “serviço de cidadania”; o artigo 2, que está a ser fortemente contestado pela comunidade muçulmana, que prevê 1 ano de prisão e 15.000 euros de multa a quem “instigar” o uso de qualquer adereço que dissimule a face (este segundo artigo destina-se a abrir a porta á prisão de homens por denúncia de mulheres).

Na minha opinião o resultado prático desta lei, a ser aprovada, será o mesmo que teve a proibição do hijab nas escolas francesas em 2004 _ aumentou exponencialmente o seu uso entre as alunas de origem magrebina.

A própria falta de tacto com que Sarkozy está a lidar com o problema, apelidando o niqab de burqa, comparando os cidadãos muçulmanos franceses aos talibãs, chamando ignorantes aos franceses ao pretender que não sabem distinguir uma coisa da outra, mostra que a forma de o governo combater o fundamentalismo em França só vai contribuir para engrossar as fileiras dos obscurantistas “islâmicos”.

O aparecimento desta lei neste momento tem como razão desviar as atenções da população dos verdadeiros problemas existentes na sociedade, procurando um bode expiatório para a crise, e assim tentar reconquistar os votos que Sarkozy perdeu para a extrema-direita de Le Pen.

Se bem que algumas mulheres o utilizem por opção com justificação religiosa ou pressão dos maridos, a maioria utiliza-o como forma de contestação política e tomada de posição face aos valores do ocidente, que segundo elas, permite a degradação da imagem e dignidade da mulher, por exemplo aceitando a prostituição em lugares públicos e a pornografia.

Esta tomada de posição ideológica joga contra o próprio Islão e aumenta o sentimento de islamofobia por parte da sociedade ocidental que vê na religião islâmica, e diga-se que legitimamente, um factor de atraso social e de “marcha atrás” da humanidade no seu caminho para o progresso.

Não esquecer que fobia significa medo e é de facto o medo que motiva a xenofobia dos ocidentais.

Faço notar que do lado “islâmico” não estamos a falar de religião nem de espiritualidade, mas sim de obscurantismo, intolerância, ignorância, aproveitamento político e manipulação, que os integristas ou fundamentalistas não desperdiçam para cativar pessoas para as suas fileiras.

Os defensores do véu integral legitimam o seu uso invocando o versículo 59 da Surat Al-‘Ahzab do Alcorão, que diz:

“Ó Profeta! Dize a tuas mulheres e a tuas filhas e às mulheres dos crentes que se encubram em suas roupagens. Isso é mais adequado, para que sejam reconhecidas e não sejam molestadas. E Allah é Perdoador, Misericordiador.”

A interpretação manipuladora e imediatista do Alcorão, que estes sectores da sociedade fazem, esvaziando-o do seu misticismo, espiritualidade e carácter gnóstico, não vendo no Livro nada para além das letras, é certamente o maior inimigo da Religião Islâmica e dos Muçulmanos enquanto comunidade de crentes.

Em Dezembro de 2009, o recém-falecido reitor da Universidade de Azhar do Cairo, Muhammad Sayyed Tantawi, afirmou que o niqab, o xador e a burqa não são islâmicos, são signos tribais.

E proibiu o seu uso nas várias instituições dependentes da Universidade, seguindo-lhe outras instituições.

O uso do véu integral não é islâmico. Nem no Alcorão nem na Sunnah.

Aliás o véu constituía até meados dos anos 90 uma excepção dentro do universo islâmico, altura em que começa a generalizar-se por motivo da influência integrista, sendo inclusivamente imposto pelos regimes mais retrógrados como por exemplo pelo dos talibãs, curiosamente na altura financiados e apoiados pelos Estados Unidos da América.

O véu integral é assim uma tomada de posição ideológica que surge por reacção á própria incapacidade dos países islâmicos em acompanhar a marcha do progresso, em proporcionar aos seus cidadãos liberdade, democracia e justiça.

Constitui de facto um factor de atraso social, discriminação da mulher e é atentatório da segurança pública.

Mas este problema terá de ser resolvido no seio da comunidade islâmica e não imposto por falsos moralistas como Sarkozy.

Cabe aos muçulmanos separar as águas, afirmando o Islão como uma religião tolerante, como uma via para a espiritualidade da sua comunidade, compatível com uma sociedade moderna e como contributo para a coexistência entre os povos.

Cabe aos muçulmanos separar a religião da prática social, separar o poder espiritual de poder político, conferir independência ao poder judicial, defender o carácter laico do estado nos países Islâmicos.

Já há quem hoje em França se interrogue sobre qual será a atitude do governo em relação ás poderosas sauditas veladas que anualmente visitam Paris e esbanjam milhões nas suas luxuosas lojas. Irão pagar a multa dos 150 euros? E os maridos, milionários que alimentam poderosos negócios europeus, serão encarcerados durante um ano por instigarem as suas mulheres a encobrir a face? A ver vamos.

Comments

  1. Luís Moreira says:

    Li com grande prazer e concordo no essencial. Ainda hoje passeava na Feira do Livro e vi uma jovem de lenço, no meio de outras jovens, mas estas sem lenço e na realidade não vi que interfira com a comunidade. Já não sei como se tratará a questão de o lenço poder interferir no reconhecimento da pessoa.A jovem, no resto da indumentária, usava alpergatas e em nada se distinguia das outras.

  2. Pedro says:

    Já vai sendo hábito vir dar-te os parabéns quando publicas um texto. Mais uma vez: parabéns, Frederico, é isso. Face aos números divulgados surge a pergunta: qual a verdadeira razão da celeuma? Ameaça ao modo de vida “francês” não parece ser.

  3. Frederico Mendes Paula says:

    Nestas coisas da política nada surge por acaso. O Sarkozy precisa de desviar as atenções dos graves problemas que a França enfrenta e ao mesmo tempo quer recuperar o terreno que perdeu para a extrema-direita. O “french way of life” não está de modo nenhum em causa. Antes pelo contrário. O sentimento geral da comunidade islâmica francesa é de orgulho pela França e de reconhecimento pela qualidade de vida que aí tem.

  4. ahmed says:

    Grande Frederico bom trabalho como de costume de ti..admito que eu também sou contra o niqab não só em Europa mas ainda nos países islâmicos. Uma mulher com o niqab pretende mostrar que ela é mais religiosa das outras «muito» mais avançada religiosamente» assim acho que é mais lógico para ela ficar em casa para evitar o que está acontecendo nas ruas ou no mundo fora…agora a lei de sarkozy claro que é inútil e não resolve nada e parece que não vai funcionar especialmente que o conselho constitucional está contra e também a policia, claro eles tem de si preocupar com coisas mais importantes do que capturar as mulheres com niqab bem como sarkozy que tem mil problemas «Carla bruni» já chega.!!
    Eu lembro há anos atrás que 3 homens famosos ingleses declararem no mesmo dia que são gays em seguida um amigo inglês em p.da luz disse: eu tenho medo que o governo faz uma lei dizendo que amanha todos temos ser gays.!! lol.!.
    Quero dizer que seja para o niqab ou burqa ou mostrar o umbigo não há necessidade de fazer uma lei, basta que certos valores como a ética e respeito e «knowledge» podem substituir a lei as vezes..em Europa fazem muitas leis «PA»..aqui em italia há 2 por dia.
    Obrigado Fredrico..gazak alah kol khyer

  5. Amadeu says:

    Dantes, em momentos de crise económica recorria-se à desvalorização da moeda. Agora com o euro é o aumento de impostos.

    Em momentos de crise económica, dantes era o proteccionismo comercial. Agora é o proteccionismo … dos costumes.

    Aumentem-se os impostos e baixem-se os véus !!

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