O meu momento American Psycho da semana passada

Entre os dois passados sábados, estive em Toronto. Efectivamente. No Verão do maldito ano de 2024, de férias no Canadá, também fora a Toronto, mas soubera-me a pouco. Muito pouco. Assim, aproveitei a presença no New Sounds, oh yeah, para me estrear na Queen Books da Queen e também na Type Books e na She Sells Sanctuary da Dundas, e rever igualmente as vizinhas Kops Records e Steve’s Music. Numa livraria da Universidade de Toronto, ab initio, umas senhoras canadianas, ao verem uma menção a Lisboa na minha identificação do simpósio, começaram a elogiar a capital, mas sublinhando que havia demasiados turistas. Eu sei, disse-lhes, com o melhor exemplo de algibeira da falácia do sujeito nulo. Todavia, vinquei: sou do Porto, mal-grado as aparências. No Porto, também, too many tourists, acrescentaram. Trouxe o Ancestor’s Tale do Dawkins e do Wong, por dez dólares canadianos, seis euros e meio, mais coisa, menos coisa. Uma pechincha. Antes do jantar, por mero acaso aparente, mas distracção efectiva, fui a um clube de Jazz, para um bocado de piano e contrabaixo. O Steinway & Sons vermelho encheu-me as medidas. O empregado do bar, com uma palestra sobre a não venda de álcool dos Estados Unidos, apesar da presença de Chardonnay da Califórnia na carta de vinhos, trouxe-me à superfície o Patrick Bateman do Ellis da minha idade adulta e o Edward G. Robinson do Lobo Antunes da minha adolescência:

Edward G. Robinson exumou o revólver do casaco assertoado, o grupo que o acompanhava estalou as culatras das metralhadoras, e os empregados do banco, de pala na testa, tremiam protegidos pela rede dos guichets.

O contrabaixo e o piano iam improvisando. Is it tasty?, perguntou o coiso, deselegante, sobre a minha prawn & andouille étoufée, acordando o Lecter adormecido em mim, desde aquele meu guia pessoal e intransmissível de Florença, redigido na praia da minha ilha e realizado no Oltrarno. Some more wine?, recarregou. Acabei a entrada, esperei pelo fim do espectáculo, paguei e fui jantar à Hothouse. Acabado o jantar, fui ver o Pistons–Knicks para o hotel. Tenho uma missão a cumprir.

Sou um fanático do American PsychoPsicopata Americano, em português–e até há, algures, uma foto comigo e com o Bret Easton Ellis, tirada pela Sofia, quando ele veio a Bruxelas. No meu mapa pessoal de Nova Iorque, tenho os locais todos (TODOS) que o Ellis identifica explicitamente no American Psycho. TODOS. A sério. TODOS. Até há um, ficai a saber, na melhor rua de Manhattan, a 72, mas no Upper East, o The Dakota fica no Upper West, o Central Park é a bitola. Como diria Reininho, you know what I mean.

Gosto do filme. Como o orçamento era limitado, a acção do American Psycho-filme passa-se em Toronto. Onde estive na semana passada, se bem vos recordais. E no Verão passado, se bem vos lembrais. Nessa altura, como já fôramos a Vancouver, Otava e Ville de Québec — ainda faltaria a excelente Montréal, em alemão, Königsberg, segundo traduções alemãs que confundem adjectivos com substantivos, lá se vai a coerência gramatical, porque um rei pode não ser real, digo eu –, precisámos de uma lavandaria ou limpeza a seco. Urgentemente. A Valet Service Cleaners, onde decorre esta magnífica cena,

estava fechada. Como provavelmente nunca mais virei a Toronto, pensei, vou ficar sem o meu momento cinematográfico American Psycho. Outras hipóteses de momentos American Psycho da semana incluíam bares e restaurantes, mas como estava de dieta, não iria estragar com uma San Pellegrino e uma salada um festim literário destes:

A bartender in a tuxedo pours champagne and eggnog, mixes Manhattans and martinis, opens bottles of Calera Jensen pinot noir and a Chappellet chardonnay. Twenty-year-old ports line a makeshift bar between vases of poinsettias. A long folding table has been covered with a red tablecloth and is jammed with pans and plates and bowls of roasted hazelnuts and lobster and oyster bisques and celery root soup with apples and Beluga caviar on toast points and creamed onions and roast goose with chestnut stung and caviar in puff pastry and vegetable tarts with tapenade, roast duck and roast rack of veal with shallots and gnocchi gratin and vegetable strudel and Waldorf salad and scallops and bruschetta with mascarpone and white truffles and green chili soufflé and roast partridge with sage, potatoes and onion and cranberry sauce, mincemeat pies and chocolate truffles and lemon soufflé tarts and pecan tarte Tatin.

Aceite o abstracto, perdão, o resumo, e consumada a perspectiva de uma semana em Toronto, aproveitei a quinta-feira para pegar nas calças a precisarem de banhos e massagens, enchi-me de audácia, armei-me em Patrick Bateson, on my way to the Chinese cleaners, entrei na Valet, com a peça de vestuário debaixo do braço, e a senhora chinesa, com sorriso de lés a lés, prometeu-me a entrega para sábado. E elogiou o meu inglês, oh! thank you!,  respondi-lhe, paguei-lhe e  parti, com o talão religiosamente guardado no meu caderno de apontamentos. Meti-me no eléctrico, desci na King, apanhei o metro e parti para o simpósio.

Voltei, como implicitamente acordado, no sábado e, ao entrar, vi à direita, onde o Bateman foi atendido na cena lá de cima, a mãe da senhora, a sogra da senhora ou a tia da senhora a costurar. Recebi as calças, fui ao hotel, meti-as na mala, apanhei uma limo para o aeroporto, enfiei-me num avião, tomei três pequenos-almoços e regressei a Bruxelas.

Até sempre, Toronto.

Comments

  1. José says:

    Malgrado ou mal-grado?

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