História em que não acontece nada

Era um modesto hotel de uma cidade de província. Um desses estabelecimentos semifamiliares, em que o dono parece ter conseguido desenvolver o dom da ubiquidade, não só para controlar os empregados e guardar a sua propriedade, mas também para observar com deleite a nossa cara de susto quando nos surpreendia em cada esquina. Era um homem calvo, de rosto amarelado, com um dente de ouro que reluzia em simultâneo com o relógio de pulso, uma espécie de sincronização prévia à dos smartwatches com os smartphones que me pareceu muito original. Esperava os hóspedes pela manhã, chegava a persegui-los se ousavam esquivá-lo, para indicar-lhes a salinha, mesmo ali ao lado, onde o pequeno-almoço estava a ser servido, como se estivéssemos em Xanadu e houvesse o risco de perder-nos. Desejava que estivesse “tudo de feição” e indagava detalhes sobre a nosso relacionamento com o colchão: demasiado brando, quiçá muito duro? E que tal as almofadas? A mantinha extra está na prateleira de cima do armário, favor não esquecer. Era diligente, atencioso, insuportável. [Read more…]

Reformas

Na nova e sofisticada loja dos CTT, a abarrotar de produtos para turistas (facilmente identificáveis por representarem sardinhas e/ou serem feitos de cortiça) e até “tablets e smartphones recondicionados”, mas em que a mesa de trabalho dos funcionários encolheu de tal modo que já nela não cabem os envelopes maiores, hoje a máquina das senhas avariou.  

De forma que tudo voltou ao sistema que sempre esteve em vigor neste país, o do funcionário que tem de sair do seu lugar, atravessar a sala, agora ampla e moderníssima, para lançar a pergunta ao grupo crescente de fregueses por atender: 

– Vales… reformas… está alguém aqui para receber?  [Read more…]

Harmonia conjugal

Abundance of Fruit (1860) – Severin Roesen

 

Aproveitei a pausa de almoço para ir às clementinas numa das poucas mercearias que por aqui resistem. Ao meu lado, entre os caixotes da fruta, uma mulher ia consultando a estátua maciça que a esperava à porta.

Queres bananas, Zé?

A estátua não se moveu. Silêncio absoluto.

Ela escolheu um cacho e pô-lo no cesto.

Queres ameixas, Zé?

E assim sucessivamente.

Quando o cesto já estava cheio e o Zé na mesma posição, ela mudou de táctica. [Read more…]

Mandem carta

Foi enquanto lia uma compilação da correspondência entre dois autores que comecei a pensar: “Ah, bons tempos!”, o que nunca augura nada de bom, é certo. Mas reparem: a carta chegava, quase sempre a horas previsíveis, e podia ser aberta de imediato ou guardada para momento mais oportuno. Guardá-la podia ser, aliás, mais saboroso do que lê-la. Talvez a psicologia ainda não insistisse na importância de adiar a recompensa, mas isso já se praticava.

A carta até podia ser lida nada mais chegasse, mas não se lhe responderia de imediato, a não ser que se tratasse de uma urgência ou de uma fase ainda febril do enamoramento. A resposta ficaria para daí a uns dias. Até lá, ia sendo amadurecida, sopesava-se o efeito desta ou daquela frase. Quando chegava o dia da resposta, voltava a ler-se a carta. Descobria-se, talvez, que se tinha treslido alguma passagem, interpretado mal o sentido de uma frase. Escrevia-se um rascunho de resposta, ocorria-nos uma frase espirituosa, passava-se a limpo. Daí a duas semanas, chegaria a resposta. Uma zanga exigia absoluta intencionalidade de pelo menos um dos interlocutores.

Compare-se isto já não com o email, cada vez mais soterrado em spam, mas com o Whatsapp. Sem ter contribuído em nada para isso, a não ser por possuir um telefone e não viver num eremitério, damos por nós a integrar uma infinidade de grupos de contactos: os amigos de X, a turma de Pilates, os pais do 7º B, os condóminos do prédio, os comensais do jantar de aniversário de Y, aqueles que uma desconhecida Kikas reuniu para enviar felicitações de Ano Novo porque teve preguiça de enviar uma mensagem de cada vez. [Read more…]

Tanto mar

«Por causa das novelas percebemos perfeitamente o português do Brasil, mas o que temos mesmo pena é de não falarmos com o vosso sotaque”, disse António Costa.», “Público”, 24-04-2023

 

No dia em que Chico Buarque, um dos meus compositores favoritos, recebeu o Prémio Camões, soube que o primeiro-ministro do meu país, numa cerimónia oficial, confessou ao chefe de Estado do Brasil que nós, portugueses, temos pena de não falarmos com sotaque brasileiro. Pelo que ouço dizer, há brasileiros que defendem que o português correcto é aquele que é falado em Portugal, o que quer dizer que há muita gente a dizer disparates dos dois lados do mar. Pelo pouco que sei, o Brasil tem sotaques que nunca mais acabam, mas António Costa deve estar a pensar naquele que é usado nas telenovelas.

Entendamo-nos: eu e o meu país somos circunstâncias que acontecemos um ao outro, para sorte e azar de ambos. Não me acho nada de especial por eu ser eu e por eu ser português. Isto de ter uma nacionalidade é um casamento de conveniência que pode parecer de amor, mas é só um acaso, como é o caso do amor, a não ser para quem acredite no destino ou num deus que tenha tudo planeado, incluindo o momento em que havemos de tropeçar nos braços que queremos abraçar.

O Brasil, falado, cantado e escrito faz parte da minha vida. Tenho horas de músicas, dias de filmes, semanas de telenovelas, meses de livros, anos disto e daquilo. Nos últimos anos, tenho tido dezenas de alunos brasileiros, calorosos, engraçados, simpáticos, com direito a debates vivos sobre o ouro que roubámos ou não, com divertidos confrontos sobre pronúncia e escrita. Há muitos anos que não é possível ser-se português sem se ser brasileiro. E americano. E inglês. E francês. E italiano. E espanhol. [Read more…]

Croniqueta acerca de Krugman e Flege

“The anti-clockwise and the clockwise logarithmic spiral.” (de Vitiello, 2014) https://bit.ly/3IXQWZe

Há umas semanas, algures entre o Teams e o Zoom, o cronista apresentou, entre outros artigos, os New Methods for Second-language (L2) Speech Research, do Flege — e achou curiosa a serendipidade do próximo parágrafo que lhe caiu ao colo, o dos new methods do nosso querido Krugman. A serendipidade. Nada encontrareis igual àquilo. Nada. Garanto. Não há copy-paste, não há papel químico. Como dizem os miúdos (e já os egrégios gregos o diriam, mas em Grego Antigo), isto não se inventa:

We have to be more cautious in describing quantitative relationships. The one thing that we were just looking at, the interactive things we can do with the new methods, and we have a figure that we will keep, which shows the inflation unemployment counterclockwise spirals in the 70s and the 80s where you have to go through this bulge in unemployment to gt inflation down… I mean… clockwise spirals…. Anyway… Like that⮏. Or, from your point of view, like that ↺.
Paul Krugman

Quanto ao resto da crónica, ficará para depois da tarefa da semana: operacionalizar, por um lado, o carácter explícito e o carácter implícito e, por outro, o grau de dificuldade. É complexo, demora imenso, mas é divertido. Mas tem de ser com papel, lápis, borracha, uma Bic e um agrafador, porque o computador deu o berro. O outro. O do trabalho. O das crónicas é este e vai funcionando.

Croniqueta acerca do calimerismo

C’est vraiment trop injuste…
— Calimero

***

Não pretendo meter foice em seara alheia, pois há abundante literatura acerca do fenómeno de não se aceitar um resultado negativo, na perspectiva de, obviamente (o obviamente é, por definição, indiscutível), sermos os maiores e, logo, se perdemos, como somos os maiores, é claro que fomos prejudicados por algum menino mau. Eis um esclarecedor texto do Nabais.

Um recente episódio [Read more…]

A balança

Estranhei, no pomar do bairro, que os quivis tivessem vindo do Chile. Foi um comentário impensado, até porque eu nem gosto por aí além de quivis. Mas a dona da loja embrenhou-se numa história rocambolesca sobre a exportação dos quivis portugueses para França, onde são seleccionados e enviados de novo para Portugal a preços mais altos. Os outros clientes – dois homens que nunca por lá tinha visto – juntaram-se à conversa, cada um com outros exemplos de negócios que acabam invariavelmente na espoliação dos produtores e no enriquecimento das grandes cadeias de distribuição. A dona da loja entusiasmou-se. Os clientes também. Saltaram para os banqueiros, as offshores. A justiça, o Rui Pinto, o Salgado. O Sistema. A pouca-vergonha, a gatunagem, o povo português é muito manso, o isto só lá vai quando o povo acordar. Quem os ouvisse, parecia que iam sair, a qualquer instante, de archote em punho, para erguer barricadas frente ao Parlamento e lançar cocktails molotov ao Sistema. [Read more…]

Uma brecha na realidade

Há quem goste de presumir distracção, como se um certo distanciamento das coisas do mundo, alguma incompatibilidade com o material, conferissem elevação e nobreza de espírito. Eu sou uma dessas pessoas, naturalmente. Nem valeria a pena vir atirar pedras se não me dispusesse a levar com alguma. Mas isto para dizer que, embora uma certa incompatibilidade com aspectos práticos continue a manifestar-se, tenho feito um longo caminho que me permitiu aprender a fazer coisas tão improváveis como verificar a pressão de pneus, abrir tampas de xarope à prova de crianças (não foi fácil) ou usar um ferro de soldar (nem perguntem).  [Read more…]

O senhor doutor arquitecto

O senhor doutor arquitecto chegou a casa, descalçou-se e, sem mais nada, cumpriu a rotina do dia arreando na mulher.

Pousou os pés em cima da mesa, ordenando à arreada que lhos lavasse, senão levava mais. A senhora lavou-lhe os pés, como bem manda a lei e porque é bem mandada. Saraiva, o senhor doutor arquitecto, calçou depois as suas pantufas peludas, dignas de um homem com vários h capitais, como deve ser. Serviu um copo de vinho e, ao terceiro, arreou na mulher – estava com fome e o jantar ainda ao lume. “Para que me serve a mulher senão para me cumprir horários?”, exclamou, enquanto a pobre coitada, dolente e cansada, pousava os tachos na mesa.

O jantar era arroz de cabidela. O senhor arquitecto gosta dele salgadinho e com um bom travo a vinagre. Colhe a primeira garfada, sopra-lhe um bocadinho com a ponta dos lábios – mas à homem, com letras capitais! – e… falta-lhe sal. Nisto, porque não há duas sem três, pousado o garfo, o senhor arquitecto olha de soslaio para a sua fiel mandatária doméstica, como quem avisa: não há duas sem três. [Read more…]

Croniqueta acerca do complexo Terças com Morrie/Pontes de Madison County

Você também?
Salvador Sobral

O Goucha e a mãe do Goucha, a Laurinda Alves, o Emplastro, o Paulinho, a Judite de Sousa e andamos nisto. Só falta o 13 de Maio. Na cova da Iria. É o complexo Terças com Morrie/Pontes de Madison County. Uma lamechice, uma pieguice e uma choradeira que estou que nem posso.

A história de Sérgio: o Sousa Pinto

Sérgio Sousa Pinto é um senhor que encontramos sempre no café da rua, de há uns 20 anos para cá. É quase mobília. Está lá sempre, nunca falha, a compor a sala.

Antigamente, quando era mais jovem, o senhor Sérgio era um homem activo, dinamizador, pungente. Falava com toda a gente, ajudava a servir às mesas, deixava as maiores gorjetas e ainda era capaz de fazer o fecho – só na carolice.

Agora? Agora não. Não sei se foi da vida, não sei se lhe aconteceu alguma coisa, mas o velho Sérgio hoje não fala com ninguém a não ser com um puto de gravata, chamado Sebastião, que lá aparece e que pede sempre um copo de leite morninho (o Sérgio que só se sentava connosco, a malta do lúpulo, do tinto e da aguardente!). Sentam-se os dois, velho e adolescente, todos os dias no canto direito da sala – lugar taciturno, lúgubre e húmido. O Sérgio, hoje já sem a genica de outros tempos, lá vai resmungando umas coisas imperceptíveis. Imperceptíveis para nós que conhecemos o Sérgio há mais de 20 anos… mas o jovem que com ele se senta ri-se de tudo o que o Sérgio diz. Não admira que seja o Sérgio a pagar os copos de leite ao miúdo.

Quando era jovem, antes de se ir embora, o Sérgio dizia sempre:

  • Tenham um resto de bom dia, camaradas!

Hoje em dia, a única coisa que conseguimos perceber vinda dos lábios do Sérgio é, também, a despedida. Só que a memória não é mesma e as palavras já não saem iguais. Agora, antes de sair, o Sérgio grita sempre:

  • Eu sou afilhado do Mário Soares!

Não sei se é a ânsia de não se esquecer, não sei se é para nos relembrar, mas a verdade é que parece ser a única de que se orgulha na vida, pois é a única coisa que sai perfeita da sua boca. Não é bonito de relembrar, mas percebe-se a dicção.

E depois lá vão eles, o Sérgio agarrado à bengala a murmurar desalentos (bengala que diz, com orgulho, ter sido feita pelo mesmo madeireiro que fez a cadeira ao Botas) e o jovem Sebastião (que foi quem lhe ofereceu a bengala) ao lado a rir muito de tudo o que o Sérgio diz e não se percebe.

No outro dia, surpreendentemente, o Sérgio berrou a toda a gente no café uma frase que se ouviu inteira:

  • Eu sou um social-democrata!

E responde-lhe o Oliveira, um social-democrata:

  • Então eu sou um anarquista!

O Sérgio e o Sebastião nunca mais lá apareceram.

Mário Machado, o privilegiado

A extrema-direita, querendo apresentar-se como antissistema, teima em ser o seu pior reflexo. Basta ver o caso de André Ventura, que passa a vida com o sistema na boca, mas também no bolso. Ou no bolso dele, do sistema. Do SL Benfica à CMTV, passando pela elite de milionários com quem se reúne e junto da qual obtém financiamento para o seu partido, não esquecendo as origens políticas do outrora afilhado de Pedro Passos Coelho, que nunca deixou Ventura cair, mesmo quando o próprio CDS se afastou da sua candidatura à autarquia de Loures, nas Autárquicas de 2017. O cheiro a racismo era já demasiadamente nauseabundo para tolerar. E quando abandonou o PSD, um dos partidos que é em si mesmo o sistema, o líder da extrema-direita não veio sozinho. Trouxe e continua a atrair inúmeras figura da casta de privilegiados da São Caetano à Lapa. E do que resta do Caldas.

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Zelenskyy VS Putin: o herói acidental e o odioso tirano

Existe um motivo, quer-me parecer, que faz com que Vladimir Putin não queira encontrar-se num frente a frente com Volodymyr Zelenskyy. Mais do que ser a personagem mais odiada do planeta, no presente momento, o que contrasta com a aura de último grande herói do presidente ucraniano, Zelenskyy é, literalmente, a antítese de Putin.

O primeiro é um actor e humorista que decidiu enveredar pelo mundo da política, como é seu direito (eu “punha” muito rápido o RAP, o Bruninho, a Cátia Domingues, o Markl, a Joana Marques ou o Diogo Batáguas no lugar de 80% dos deputados que estão na AR, sem pestanejar), e que agora lidera, com bravura e uns imensos tomates, a resistência à violenta invasão de um tirano que não pode argumentar estar rodeado pela NATO para invadir, esmagar e ocupar um Estado soberano que nem sequer integra a Aliança. Até porque os mísseis dele também estão apontados para cá. O argumento é real, mas não legitima, de forma alguma, a destruição em curso. Para “libertar” o Donbas, não precisa de sitiar Kiev ou bombardear Mariupol. Putin, um dos maiores financiadores da extrema-direita europeia, ele próprio um ultranacionalista, não quer desnazificar coisa nenhuma. Quer, apenas e só, decapitar e substituir o poder político ucraniano, para lá colocar outro do seu agrado.

Nenhum argumento, real ou ilusório, justifica uma invasão militar. Resistir é a única saída, mais ainda para quem recusou uma extradição segura e um exílio de luxo no outro lado do oceano. E essa é a grande afronta, talvez a maior de todas, que Zelenskyy poderia fazer ao rei-sol do Kremlin, que o olha com desdém e indigno, ele ao seu povo, de existir como nação. E eles a resistir, outnumbered and outgunned:

  • If I was in World War III they’d called me Spitfire.

A música anda sempre à frente do seu tempo.
Adiante.

O segundo é um carreirista de dois regimes, sendo hoje proprietário de facto do segundo. Começou nos serviços secretos, fez-se a vida, subiu até onde pôde e deu o salto para a política, como qualquer carreirista que se preze. Foi, desde sempre, do sistema. Mas a escalada foi impressionante, seguramente apoiada nos mesmos métodos que aprendeu e desenvolveu – com mestria, diga-se – no KGB, e é hoje o senhor absoluto da Federação Russa. Algo que lhe poderá até correr mal, mas outro dia lá iremos.

Putin é o sistema. No seu expoente máximo. O grande irmão que tudo controla, que corrompe, que persegue, que discrimina, que agride. O sistema elitista que dizima quem se lhe opõe. Que tortura, envenena e mata. Putin é a negação da democracia. E a democracia também tem os seus pequenos putin-minions, que o digam iraquianos, iemenitas ou vários povos da América Latina. Acontece que, por cá, temos o poder de lhes tirar o poder. Algo que não acontece na Federação Russa. Não é uma diferença de somenos. Faz toda a diferença. Toda.

Há muito que pode ser dito e apontado a Zelenskyy. Deixarei esses factos para outro dia. Mas não existe comparação possível entre um tirano e um político imperfeito, como o são todos, em maior ou menor grau. Em todo o caso, Zelenskyy é hoje a figura mais aproximada a líder do mundo livre, ainda que acidentalmente. Pela coragem, pela determinação e pelo exemplo. Quando os americanos saíram cobardamente do Afeganistão, ainda “ontem”, Ashraf Ghani foi o primeiro a pôr-se a milhas. Com uma mala cheia de dólares. Zelenskyy podia ter seguido a mesma via. Podia ter sido o Puidgemont que fugiu para o exílio em Bruxelas. Mas ficou. E talvez venha a morrer nas próximas semanas. Mas é ele, não as armas “cedidas” pelo Ocidente, um dos poucos que poderão dar a vitória, altamente improvável, à Ucrânia. A História contará a sua história. Cantará a sua história, concorde-se ou não com ela. Já Putin será apenas mais um merdas do Hall of Fame das abominações, à mesa com Hitler e Estaline. No esgoto da História. Para ser odiado para sempre, excepto por aquela malta que, por motivos variados, opta por branquear o ocasional ditador. A democracia tem destas coisas. É uma brincalhona.

Ser pai em tempos de guerra

Não sei se vai ficar tudo bem. Gostava de ter a certeza, mas não tenho. É impossível ter certezas durante uma guerra, mais ainda quando o agressor é um tirano sanguinário e sem escrúpulos, frio e calculista, que de louco não tem nada, por muito que aparente ser.

Ainda assim, recuso fazer parte do coro que anuncia o holocausto nuclear, porque as lições da Guerra Fria ainda estão bem presentes e a escalada é altamente improvável, mais ainda quando a NATO não intervém directamente no conflito. Contudo, no imediato, a situação com que nos deparamos é muito preocupante, por outros motivos que já todos conhecemos, e torna-se cada vez mais difícil de processar, principalmente para quem, como eu, tem filhos. Felizmente, estamos no conforto da paz, a 3400km daquele inferno. Se lá estivesse, “preocupante” não seria a palavra que utilizaria.

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Os cúmplices europeus de Vladimir Putin

Noticiou ontem o Público que França, Alemanha, Itália, República Checa, Eslováquia, Espanha, Croácia, Finlândia, Áustria e Bulgária venderam armamento e equipamento militar à Federação Russa nos últimos oito anos, após a invasão e anexação da Crimeia. Fun fact: a UE decretou um embargo de venda de armas e similares ao regime de Putin, em Junho de 2014. Não faz mal. Acena e sorri. Se questionares estás a fazer propaganda pró-Putin.

No texto do implacável embargo da intransigente União podemos ler o seguinte: é proibida a venda, fornecimento, transferência ou exportação directa ou indirecta de armas e material conexo de todos os tipos, incluindo armas e munições, veículos e equipamento militar, equipamento paramilitar e respectivas peças sobressalentes, para a Rússia por nacionais dos Estados-membros ou a partir dos territórios dos Estados-membros ou utilizando navios ou aviões que usem a sua bandeira, quer sejam ou não originários dos seus territórios”. E então, que fazer? Simples: arranja-se uma lacuna na lei – tantos advogados em part-time nos Parlamentos europeus têm que servir para alguma coisa – e decreta-se um regime excepcional de coiso. Sim, de coiso. Mas podemos chamar-lhe filhadaputice, se preferirem.

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A culpa é dos generais

Ao que tudo indica, ter-se-á decretado que alguns generais portugueses são emissários de Vladimir Putin. Confesso que não li e ouvi tudo o que escreveram e disseram, mas, como em tudo na vida, já li e ouvi tiros certeiros e auto-chumbo grosso no pé destes nossos generais-comentadores, que integram o exército de analistas da cobertura orwelliana da invasão da Ucrânia. 

Contudo, noto que acontece com eles o mesmo que tem acontecido com alguns analistas provenientes da academia, quando optam pelo comentário objectivo, focado na análise concreta dos factos, e não em perspectivas político-partidárias, guerras ideológicas ou manipulações emocionais. E isto é particularmente arriscado, ou não estivesse o ambiente altamente propício ao simplismo e a abordagens maniqueistas. O novo politicamente correcto impera, mais ainda que o próprio Putin, e quem ousa fazer uma análise que tenha em conta a sequência de acontecimentos que nos trouxeram até aqui corre o risco de acabar na fogueira virtual, acusado de putinismo e outras heresias.

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O Conde Ferreira e a invasão da Ucrânia – Crónicas do Rochedo #56

Nigel Farage says Ukraine invasion is result of EU and Nato provoking Putin

Olhem quem se juntou ao PCP e a outros companheiros de luta de certa esquerda portuguesa, o Nigel! Que maravilha. Por estes dias, vejo juntar-se a este belo grupo de “Putinianos dos Últimos Dias” os chalupas que acreditavam que a vacina para combater a Covid era uma estratégia do Bill Gates para nos “chipar” a todos ou que nos iam infiltrar uma cena qualquer no braço com 5G (confesso que nesta estive esperançado pois nalgumas zonas deste belo rochedo a rede de telemóvel é miserável. Não resultou, dasss). E os terraplanistas. Sim, esses também andam por essas bandas. Les beaux esprits se rencontrent….

Ver o Nigel, o Tiago e a Raquel juntos no mesmo barco fez-me olhar para a realidade com outros olhos. Quando era adolescente (no século passado) costumava juntar-me com os amigos na conversa noite e madrugada fora ali para as bandas do cruzamento da Areosa. De quando em vez surgiam umas figuras fascinantes que desciam a rua de Costa Cabral até ao cruzamento. Eram os mais rebeldes pacientes do Hospital Conde Ferreira. Escapuliam-se dos seus dormitórios pela calada da noite e vagueavam pela Costa Cabral. Uns apareciam nas Antas, outros no Marquês e os que vos falo inclinavam para a “minha” Areosa. Talvez por ser a descer. Talvez.

O que sei é que se juntavam a nós, pediam um cigarro, acendiam e fumavam o SG Filtro com o vigor e o prazer de um fruto que lhes era proibido. E falavam. Falavam muito. Para alguns, no meu grupo, era uma verdadeira conversa de doidos e afastavam-se. Para mim (e para o nosso José Mário Teixeira) não era motivo de alheamento. Pelo contrário. Nunca percebi se por um certo pudor e respeito ficava ali a ouvir. Ou, se calhar, era curiosidade. Ou ainda, como diziam, era proximidade – diz-se que os “tolos” reconhecem os seus pares. Who knows…

De repente, sem mais nem menos, partiam. Subiam em direcção ao seu hospital. E ficávamos nós a comentar esses momentos que eram sempre surreais. O mesmo surreal que sinto quando ouço os Boaventura, as Raquel e outros espíritos sobre a culpa da Ucrânia, da Nato, do imperialismo e do Sérgio Conceição na invasão russa da Ucrânia.

No fundo, continuo na mesma. Fico a ouvi-los. Bastava pedirem e até lhes oferecia um cigarro. Já não um SG Filtro pois disso não há por estas bandas. Mas um Camel dos meus. E depois, era vê-los partir. Não para o hospital, como os outros do passado século. Para o conforto dos seus sofás de couro de Professor Doutor com todas as letras numa qualquer faculdade das nossas Universidades. Só que destes tenho medo. Podem vir a ser professores da minha filha. São professores dos filhos dos outros. MEDO.

Há mais vida para além do medo # 2 – Mataram o James Bond e ninguém quis saber

(Continuando)

Recordo quando vi pela primeira vez no grande ecrã, um filme da saga 007. Foi uma experiência juvenil em forma de reposição, no extinto cinema Raione, no Porto: “007 – Octopussy”.

A partir dessa experiência, criou-se um inultrapassável diferendo entre mim e o meu pai, logo que o filme acabou e nos dirigíamos para casa: eu gostava de Roger Moore, o meu pai gostava de Sean Connery. Mas, numa coisa concordávamos: George Lazenby foi um erro de casting.

Aquele fascínio de beldades e perigos, que circundavam as missões de James Bond, as engenhocas e a sua capacidade de improviso, criaram laços de aventura e fantasia que me foram acompanhando ao longo de cada estreia.

Achei que Roger Moore foi 007 até tarde demais, por muito que fosse o meu predilecto. Quem mais poderia acabar uma luta de vida ou morte não só vencedor como, também, com o cabelo impecavelmente penteado? Só mesmo Moore.

E tive pena quando Timothy Dalton, um excelente actor formado na Royal Academy of Dramatic Art, não vingou na sua versão.

Posteriormente, Pierce Brosnan encheu as medidas de todos os fãs, conseguindo uma espécie de aliança entre a dureza de Connery e a elegância de Moore.

Mas, foi com Daniel Craig que veio a grande surpresa e, também a grande mudança na saga 007.

Daniel Craig tinha tudo para se dar mal como Bond: feições agrestes, expressão afivelada, baixo e modos rudes. No entanto, construiu e revelou um 007 muito mais autêntico do que qualquer um anterior. O que terá sido, também, a grande aposta dos produtores: a credibilização de 007 para além de uma personagem de fantasia. E Daniel Craig foi perfeito.

Todavia, esta nova versão de 007 trouxe um preço: James Bond era mais humano do que nunca. Ficava com feridas no rosto, sangrava, nutria e debatia-se com sentimentos. Resolvia as situações mais com instinto, força e carácter do que com engenhocas. [Read more…]

Alguém pediu um apocalipse nuclear?

Leio por aí, nas redes e na imprensa, várias pessoas que defendem uma intervenção directa da NATO no conflito. Vejo-as ser confrontadas por outras pessoas, a meu ver mais sensatas, que lhes dizem:

  • Então e se isso levar a uma escalada nuclear?

Ao que essas pessoas respondem algo como:

  • Que se lixe! Temos que fazer justiça pelo povo ucraniano, doa a quem doer.

Isso, fazer justiça. Tudo muito bonito, tudo muito poético, principalmente se aparecesse um James Bond no último minuto, para desactivar o missel balístico intercontinental com o nuke lá dentro, ao qual estaria amarrada uma lindíssima Bond girl, a jeito de ser salva e beijada pelo galã. Acontece que esta merda não é Hollywood e, havendo quem queira mesmo morrer, mais vale ir para a Ucrânia combater. Sempre será mais útil à causa.

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Capitalismo, o melhor amigo da máfia oligárquica de Vladimir Putin

Os oligarcas russos, como os seus congéneres chineses ou angolanos, navegam livremente nas águas neoliberais do capitalismo de casino, distribuindo as suas fortunas por diferentes ilhas paradisíacas, onde mais do que não se colocar a maçada de ter que pagar impostos, é possível depositar legalmente o produto de todo e qualquer crime, desde que efectuado na ordem dos milhões. É para isso que servem os paraísos fiscais: são o porquinho mealheiro da máfia contemporânea. O mercado livre também é isto.

Não deixa de ser curiosa, a facilidade com que os regimes autoritários e totalitários se movimentam na economia global, alegadamente construída sob a lógica da liberdade do indivíduo, e que, paradoxalmente, subsiste, em larga medida, da subjugação de milhões de indivíduos, à mercê do chicote ou da bota cardada, como acontece na China ou com as monarquias absolutas do Golfo, sem as quais o modelo económico que nos governa de facto entraria em colapso já amanhã.

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Notícias de ninar

Uma vez tive um pesadelo que ainda hoje me assola.

Sonhei que estava num bar muito manhoso, com vários amigos e havia música no palco. De repente, surge uma menina aos altifalantes, anunciando o próximo artista. Um artista de covers, disse.

  • Senhoras e senhores, Elton John!

Toda a gente aplaudiu muito. Afinal, tratava-se de Elton John, o Sir, o grande Elton John. Na minha mente ecoava “and I think it’s gonna be a long, long time” e “oh, Nikita, you will never know”.

O Sir Elton diz lá umas palavras ao microfone. Diz que dedica a música à CNN Portugal. “Imaginem um mundo onde todos os povos se dão bem”…

“Ui… para onde é que isto vai?”, pensei. “O Sir Elton a dizer-nos para imaginarmos um mundo sem existir Estados Unidos da América?…”

Então, começa a cantar o “Imagine”. E eu penso: “espera lá, aquele não é o Elton John, é o José Cid mascarado de Elton John!”. Vem, viver a vida amor, que o tempo que passou…. Ah? [Read more…]

Venezuela abraça o capitalismo, ou como reciclar um ditador quando precisamos dele

Segundo a Bloomberg, há venezuelanos a voltar ao país, devido a um volte-face inesperado: a Venezuela decidiu abraçar o capitalismo.

Lendo uma coisa destas, assim pela manhã, fica-se com a sensação que teve um lugar um golpe de Estado em Caracas, liderado pelo Guaidó e financiado pelos EUA, que derrubou Nicolás Maduro. Querem ver que, com as TVs ocupadíssimas em loops sobre a invasão da Ucrânia, tão ocupadas que já nem a pandemia tem um holofote que lhe valha, a coisa lhes passou ao lado?

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Há mais vida para além do medo # 1 – O exemplo do Tenente Columbo

Num passado recente, disse-se que “há mais vida para além do défice”. Mais tarde, e paulatinamente, começou a desenvolver-se a ideia de que “há mais vida para além da pandemia”. Hoje, diria que “há mais vida para além da guerra”.

Curiosamente, existe um denominador comum ao défice, à pandemia e à guerra, enquanto temas fulcrais – para não dizer únicos – da actualidade, em cada um dos momentos: o medo.

Enquanto instrumento que mantém activo o nosso sistema de vigilância, o medo é essencial para que estejamos atentos ao que se passa em nosso redor e às interacções com o tempo, o espaço e os outros, que fazem parte do nosso quotidiano. É o que nos mantém em alerta quando atravessamos a rua, quando falamos com alguém, quando tomamos uma decisão.

Mas, o medo é, também, um ancestral instrumento de condicionamento comportamental quer no âmbito da educação quer no âmbito da vida em sociedade. Seja o medo do papão ou do bicho mau, para que se coma a sopa toda, seja o medo de expressar opinião ou tomar posição pública sobre certo assunto.

Ditaduras e democracias, através de métodos variáveis e com graus de severidade diversos, usam o medo como modo de modelação de comportamentos quer individuais quer colectivos. Seja propaganda, seja publicidade, a indução de comportamentos por via do medo, visando acção, omissão ou reacção, é transversal a qualquer organização social, corporativa ou religiosa.

Aqui, existe um papel fundamental por parte da comunicação social, no modo como o medo é transmitido ao indivíduo visando a sociedade. Reiterando mensagens de conteúdo pré-estabelecido, a ordem da percepção, e a percepção da ordem, constroem-se com vista ao estabelecimento de uma realidade quase sempre conducente a uma só verdade.

Sem querer recuar ao Estado Novo, em que o medo era, desde logo, um instrumento de perpetuação do poder instalado e dos respectivos interesses económicos, corporativos e económicos circundantes, bastará apreciar como, em democracia, o medo tem sido um recorrente mecanismo de condicionamento social, quer em matéria de pensamento quer em matéria de comportamento. [Read more…]

Guerra na Ucrânia: Quem não quer ser lobo – Crónicas do Rochedo #55

Três generais portugueses, que fazem a análise da guerra nas televisões, têm sido acusados de posições pró-russas. Eles respondem que fazem comentários “neutrais” com base na doutrina militar e geoestratégica. E que não querem “diabolizar” nenhuma das partes. A guerra sobre a guerra tem estado ao rubro – Vitor Matos, Expresso, 7 Março

 

O Aventar foi um dos poucos blogues a abordar esta matéria. Não faltaram comentadores, jornalistas, políticos e até outros militares a considerarem, no mínimo, curioso este alinhamento destes três militares. Porquê? A própria peça jornalística o refere:

O major-general Raul Cunha chegou a dizer, na SIC, que “o Presidente russo foi encurralado” pela NATOe justificou a anexação da Crimeia; o major-general Carlos Branco disse ao “Observador” que a Rússia não ia “permitir a chacina da população ucraniana russa” em Lugansk e Donetsk, classificando a parte ucraniana como “a ameaça”; um terceiro analista, o major-general Agostinho Costa tem usado (nos três canais de televisão) argumentos como “a preocupação [dos russos] em não causar baixas civis”, ou a desvalorização da coluna paralisada perto de Kiev. No dia seguinte à invasão, quando garantiu: “Os russos já estão em Kiev.” E disse que Volodymyr Zelensky tinha fugido para Lviv, na zona ocidental“.

Ora, olhando para o que estes três militarem andaram e andam a dizer, comparando com a realidade que nos é dada a ver, penso que se entende, por um lado o desconforto das chefias militares no activo com estes momentos televisivos (chegando a palavra “vaidade” a ser referida) e por outro as críticas de que estão a ser alvo (cuja dimensão até justifica uma peça no Expresso) nas redes sociais. Obviamente, alguns desses críticos fizeram o trabalho de casa e daí surgirem acusações como: “Outras fontes explicam a posição destes generais por alegadamente pertencerem à ala esquerda militar. Alguns argumentos não são muito diferentes dos do PCP, sobretudo os que têm a ver com a expansão da NATO e dos”nazis” nas repúblicas separatistas. Todos foram ver por onde andaram e andam estes militares, onde costumam ir falar, o que costumam dizer, as coincidências e os percursos – no fundo, foram fazer o que os militares costumam fazer sobre os outros.

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A invasão da Ucrânia e o novo politicamente correcto – O Equilíbrio do Terror #13

Andamos há anos a ouvi-los, aos berros, a anunciar o fim do mundo, porque a maleita do politicamente correcto se abateu sobre nós. Já não se pode gozar com homossexuais, não se pode poluir à vontade, não se pode ser nazi descansado, não se pode ser racista sem aparecer um woke zangado. Uma tragédia de proporções só comparáveis às do Holocausto.

Fora de tangas, é verdade que o policiamento da linguagem, em alguns momentos, tem ido longe de mais. Que a linguagem dita inclusiva, não raras vezes, atropela a integridade da língua portuguesa e a liberdade de expressão, para não falar em episódios absolutamente ridículos como aquele em que os seus proponentes defendem a substituição da palavra “mãe” por pessoa lactante, para não incomodar a ala mais radical da génerosfera.

O politicamente correcto tem sido associado à esquerda, criando, à direita, uma espécie de contra-cultura de inconformados, que não aceitam nenhum dos pressupostos associados ao conceito. No entanto, desde o início desta guerra, emergiu um novo politicamente correcto, com um nível de policiamento da linguagem sem precedentes. Já não se trata de apontar o dedo a quem discrimina ou agride verbalmente. Trata-se de rotular de ditador quem ousa meter o dedo numa ferida, que é real e factual.

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Uma crise humanitária sem precedentes – O Equilíbrio do Terror #12

Ouço na rádio que vem aí uma crise humanitária sem precedentes, nunca antes vista. Sorte a nossa, o Iémen não existe, não é real. Tal como não são reais os 14,5 milhões de iemenitas que passam fome, os 20 milhões a precisar de ajuda humanitária urgente e os 377 mil mortos, desde que o conflito começou, em 2014. Sim, eu sei, não passa no telejornal. Não há edifícios iluminados com a bandeira do Iémen, grandes recolhas de donativos ou manifestações com jotas abraçados em frente à embaixada da Arábia Saudita. Mas está a acontecer e 70% das vítimas mortais são crianças. 264 mil crianças, levada pela guerra, pela fome ou pela doença, que nunca souberam o que é ser criança e que não nos merecem o mínimo esforço voluntário ou indignação.

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Guerra, o modo de vida da Iniciativa Liberal

Não é novidade para ninguém que BE e PCP são contra a presença de Portugal na NATO. São-no desde sempre. E, convenhamos, trata-se de uma opção ideológica e programática perfeitamente legitima, que diz respeito a cada partido. Há quem já não se lembre, mas o CDS também era eurocéptico. O próprio Cavaco Silva chegou a afirmar que a UE não era para toda a vida.

Sou a favor da presença de Portugal na NATO, até pela nossa dimensão e vulnerabilidade, o que não invalida que tenha críticas ao funcionamento da organização, que, na prática, é um instrumento de política externa dos EUA, no interior do qual todos os outros são Estados-clientes do Pentágono.

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É chegada a hora de seguir Emiliano Zapata – Crónica do Rochedo #54

“É melhor morrer de pé do que viver de joelhos”, Emiliano Zapata

Não existe nenhuma justificação, nenhuma, para a Rússia invadir a Ucrânia. Nenhuma. Nem ideológica nem histórica nem qualquer outra. Nenhuma. E não existe nenhuma, nenhuma razão para os povos que defendem a nossa civilização, o nosso modo de vida, não ajudarem aqueles que, lutando pelos mesmos ideais, estão a sofrer uma guerra que lhes é imposta por um tirano. E ajudar não é, ou não pode ser apenas, enviar armas ou palavras amigas de solidariedade. Não, não pode.

Uma parte, felizmente minoritária, da opinião pública está a comportar-se hoje, como em 1938, se comportaram uma parte minoritária dos seus avós em relação à Alemanha e a Hitler. Entendem que é a hora da paz esquecendo que a paz só se faz se essa for a vontade de ambas as partes. E que quando Putin afirma isto:

Significa que está fechada a porta da paz. Putin não quer saber se o seu povo vai morrer à fome por causa das sanções, como não quer saber de moral ou de ética se tiver de executar um verdadeiro genocídio do povo ucraniano. É para o lado que dorme melhor. Com Putin não há paz como não há moral ou ética. E quando não há moral nem ética só o caminho da guerra resolve a falta de paz.

Nós permitimos à Ucrânia sonhar? Não, porque não somos um Putin. Quem sonhou com a UE ou com pertencer à NATO foram os ucranianos, porque ELES desejam viver como nós, desejam para si prosperidade e democracia como a que temos (mesmo com muitos defeitos). Nós oferecemos a esperança disso acontecer? Claro que sim. Não o fazer seria condenar o povo da Ucrânia. E é por isso que não chegam moções de condenação ou sanções económicas. Não. É preciso ir para a Ucrânia, combater ao seu lado.

Ou então, somos piores que o Putin. Somos uns covardes sem nome. Uns egoístas sem perdão. Somos aqueles que ficarão na história como os traidores de Zelensky e do povo ucraniano. O povo ucraniano e o seu presidente estão a fazer o que Putin os obrigou a fazer, a defender a sua pátria, a sua dignidade mesmo que tal os leve para a morte. E leva-os para uma morte certa se o ocidente se comportar como um imbecil covarde e traidor. Zelensky está a fazer o que tem de ser feito. O que fez o D. João I. Quantos terão dito que era a morte certa do seu povo e que isso não passava de orgulho e estupidez? Como o fez Winston Churchill contra Hitler e quantos não afirmaram que era levar o seu povo para uma morte certa. Raios, está na hora de abandonarmos este complexo de sermos os bisnetos dos que não foram para a Índia…

Agora é tarde, “Inês é morta”. Só existem dois caminhos: lutar ao lado daqueles que defendem o nosso modo de vida ou capitular. Hoje é a Ucrânia, amanhã serão os nossos filhos. Temos de lutar com os ucranianos contra o tirano. Sim, o caminho da guerra. E sim, vai ser feio, vai ser catastrófico mas, tal como Emiliano Zapata, prefiro morrer de pé do que viver de joelhos. Com a moral de quem, fruto da idade, será chamado a esse desiderato. Pelo futuro da minha filha, dos filhos dos meus concidadãos europeus, o farei. Não sou, não quero ser, bisneto dos que não foram para a Índia…

 

 

 

 

 

 

Pelo embargo total à Federação Russa – O Equilíbrio do Terror #11

Putin invadiu a Ucrânia, ameaçou todos os membros da NATO, ameaçou a Finlândia e a Suécia, a quem violou o espaço aéreo, ameaçou dar início a uma guerra nuclear e, ontem, atacou a maior central nuclear da Europa, na cidade ucraniana de Enerhodar. A par disto, a agressão continua, imparável, e a determinação do exército e da guerrilha urbana ucraniana pouco pode contra a poderosa máquina de guerra russa. Continuam a morrer civis, a ser destruídas infra-estruturas essenciais, a ser arrasadas zonas habitacionais, e existem até relatos da entrada, em território ucraniano, de bombas termobáricas, proibidas pela convenção de Genebra. E sim, eu sei que os EUA também usaram a MOAB no Afeganistão. Mas este texto não é sobre o Afeganistão, da mesma maneira que os muitos textos que escrevi sobre o Afeganistão não eram sobre a invasão da Ossétia, da Abecásia ou da Crimeia.

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