Aproveitei a pausa de almoço para ir às clementinas numa das poucas mercearias que por aqui resistem. Ao meu lado, entre os caixotes da fruta, uma mulher ia consultando a estátua maciça que a esperava à porta.
––Queres bananas, Zé?
A estátua não se moveu. Silêncio absoluto.
Ela escolheu um cacho e pô-lo no cesto.
––Queres ameixas, Zé?
E assim sucessivamente.
Quando o cesto já estava cheio e o Zé na mesma posição, ela mudou de táctica.
––A doutora diz que as pêras desintoxicam o fígado…
Ouviram-se, então, os sons ferrugentos de engrenagens há muito sem olear e o Zé moveu a cabeça na direcção da loja, encontrou o olhar expectante não só da mulher, mas dos clientes todos (também não éramos muitos), e com uma voz rouca, pouco usada, murmurou:
––Pode ser.
Depois levou com muito vagar a mão ao bolso da camisa, tirou de lá um maço amachucado e acendeu um cigarro, para grande escândalo fingido da mulher, que já sabia que ele ia fazer aquilo.
––Parece impossível, Zé! Assim não há pêras que te salvem.
O merceeiro, grande conhecedor de estratégias de venda, sentenciou:
––As maçãs são muito boas para os pulmões.
Ela foi pressurosamente escolher três ou quatro, não queria pesos na consciência. E assim se recompôs a harmonia conjugal.
O Zé não quer nada, apenas que o deixem em paz.
Tem a sorte de ter uma companheira que se preocupa com a sua saúde, mas creio que lhe seja indiferente.
Bonito texto (mais um)
Ai, tão pouco participativo…que horror!
A comunhão em compras de fruta é um dos alicerces da harmonia do casal!
Harmonia conjugal é fazerem as compras juntos.
Sem pensarem que, dessa forma, um está a trabalhar enquanto que o outro está, tipicamente, parado a observar o que o outro está a fazer.
É a ineficiência conjugal. Em vez de optarem pela divisão do trabalho e pela especialização, optam por fazerem as coisas em comum, promovendo a baixa produtividade.
É quase como se isso fosse humano, e a especialização uma alienação contra-natura.