Harmonia conjugal

Abundance of Fruit (1860) – Severin Roesen

 

Aproveitei a pausa de almoço para ir às clementinas numa das poucas mercearias que por aqui resistem. Ao meu lado, entre os caixotes da fruta, uma mulher ia consultando a estátua maciça que a esperava à porta.

Queres bananas, Zé?

A estátua não se moveu. Silêncio absoluto.

Ela escolheu um cacho e pô-lo no cesto.

Queres ameixas, Zé?

E assim sucessivamente.

Quando o cesto já estava cheio e o Zé na mesma posição, ela mudou de táctica.

A doutora diz que as pêras desintoxicam o fígado…

Ouviram-se, então, os sons ferrugentos de engrenagens há muito sem olear e o Zé moveu a cabeça na direcção da loja, encontrou o olhar expectante não só da mulher, mas dos clientes todos (também não éramos muitos), e com uma voz rouca, pouco usada, murmurou:

Pode ser.

Depois levou com muito vagar a mão ao bolso da camisa, tirou de lá um maço amachucado e acendeu um cigarro, para grande escândalo fingido da mulher, que já sabia que ele ia fazer aquilo.

Parece impossível, Zé! Assim não há pêras que te salvem.

O merceeiro, grande conhecedor de estratégias de venda, sentenciou:

As maçãs são muito boas para os pulmões.

Ela foi pressurosamente escolher três ou quatro, não queria pesos na consciência. E assim se recompôs a harmonia conjugal.

Comments

  1. Abel says:

    O Zé não quer nada, apenas que o deixem em paz.
    Tem a sorte de ter uma companheira que se preocupa com a sua saúde, mas creio que lhe seja indiferente.

    Bonito texto (mais um)

  2. JgMenos says:

    Ai, tão pouco participativo…que horror!
    A comunhão em compras de fruta é um dos alicerces da harmonia do casal!

  3. balio says:

    Harmonia conjugal é fazerem as compras juntos.
    Sem pensarem que, dessa forma, um está a trabalhar enquanto que o outro está, tipicamente, parado a observar o que o outro está a fazer.
    É a ineficiência conjugal. Em vez de optarem pela divisão do trabalho e pela especialização, optam por fazerem as coisas em comum, promovendo a baixa produtividade.

    • Paulo Marques says:

      É quase como se isso fosse humano, e a especialização uma alienação contra-natura.

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