Foi enquanto lia uma compilação da correspondência entre dois autores que comecei a pensar: “Ah, bons tempos!”, o que nunca augura nada de bom, é certo. Mas reparem: a carta chegava, quase sempre a horas previsíveis, e podia ser aberta de imediato ou guardada para momento mais oportuno. Guardá-la podia ser, aliás, mais saboroso do que lê-la. Talvez a psicologia ainda não insistisse na importância de adiar a recompensa, mas isso já se praticava.
A carta até podia ser lida nada mais chegasse, mas não se lhe responderia de imediato, a não ser que se tratasse de uma urgência ou de uma fase ainda febril do enamoramento. A resposta ficaria para daí a uns dias. Até lá, ia sendo amadurecida, sopesava-se o efeito desta ou daquela frase. Quando chegava o dia da resposta, voltava a ler-se a carta. Descobria-se, talvez, que se tinha treslido alguma passagem, interpretado mal o sentido de uma frase. Escrevia-se um rascunho de resposta, ocorria-nos uma frase espirituosa, passava-se a limpo. Daí a duas semanas, chegaria a resposta. Uma zanga exigia absoluta intencionalidade de pelo menos um dos interlocutores.
Compare-se isto já não com o email, cada vez mais soterrado em spam, mas com o Whatsapp. Sem ter contribuído em nada para isso, a não ser por possuir um telefone e não viver num eremitério, damos por nós a integrar uma infinidade de grupos de contactos: os amigos de X, a turma de Pilates, os pais do 7º B, os condóminos do prédio, os comensais do jantar de aniversário de Y, aqueles que uma desconhecida Kikas reuniu para enviar felicitações de Ano Novo porque teve preguiça de enviar uma mensagem de cada vez. Todos estes grupos produzem comunicação abundante. Alguns dos seus membros já nem sequer digitam as suas mensagens, com recurso a ferramentas ancestrais como letras e sinais de pontuação. Nem sequer com hieróglifos. Preferem enviar mensagens áudio, gravadas enquanto caminham pela rua e seguram o telefone como se comessem uma torrada, e que se estendem por longos minutos, alimentadas por indecisões (“Aaah… Mas pronto…”) e comentários descritivos sobre peripécias em directo (“Está aqui um carro a buzinar, espera aí… Aiii! Quase que era atropelado por uma trotinete. Estes gajos pensam que é tudo deles!…”).
As mensagens chegam em catadupa. E pior: é suposto responder se não a todas, pelo menos a várias. Ainda não disseste nada. Que achas? Alô?! Estás aí? Reunião às cinco ou às seis? Precisamos que nos confirme. A Ritinha pode ir à festa do Tomás? Viste as notícias? Tu achas normal o que ela me disse?!
Forçados a responder em momentos tantas vezes inoportunos, treslemos, não percebemos o sentido de um hieróglifo, damos respostas que pretendiam ser rápidas, cirúrgicas, incisivas, mas que são interpretadas como frias, secas, antipáticas, sobretudo se nos esquecermos do hieróglifo sorridente. Ficam por responder outras tantas. Ao fim do dia, consumidos pela culpa, dispomo-nos a dar resposta a todos. 47 mensagens no grupo A, 26 no grupo B, 109 no C. Que se lixe, antes a culpa.
Logicamente, a ausência de entraves à produção de mensagens produz mal-entendidos, arrufos, discussões, zangas que duram anos. Aliás, a zanga acaba por gerar a criação de novos grupos. Cria-se um outro grupo que já não inclui a pessoa com quem o criador do grupo se zangou. Não sabemos o motivo da zanga, ou foi-nos explicado mas não o entendemos, mas, ai!, já estamos num novo grupo e o contador das mensagens, sempre sobreexcitado nos dias iniciais, não pára de subir.
Saturados de inputs, não conseguimos produzir outputs satisfatórios à velocidade adequada. A mensagem já só é ruído. A ferramenta que ia organizar a comunicação tornou-a impossível. Milhões e milhões de emissores produzem quantidades incomensuráveis de mensagens. Esses emissores são, ao mesmo tempo, receptores de quantidades incomensuráveis de mensagens. Que a comunicação seja eficaz, o que por vezes ainda sucede, é um prodígio que só pode espantar-nos.
Acham que exagero? Não concordam? Mandem carta.
Usar produtos do Sefardita/askenaze dono da Meta e ajudar a assassinar cianças Palestinianas pela tropa Sionista/nazi de Israel
Enviem/recebam email e limpem o lixo e Spam todos os dias
Há boa solução, ignorar quem se preocupa com isso.
Tenho o wass ap (subsituiu o skip, paz à sua alma) e não tenho esses problemas.
Muitas vezes culpa-se a ferramenta, mas o problema está entre a cadeira e o monitor.
Oi ?
Para voz o viber serve muito bem.
O problema é o que diz o Paulo: as pessoas mesmo as que se dizem de “esquerda” ignoram o problema palestiniano, e vão atrás da manada
Olá Carla.
Não envio carta porque hoje é Sábado e só na segunda- feira é que seguiria. Também não faria sentido enviar uma carta, em princípio do Porto, para alguém que vive na mesma cidade (creio eu).
Por isso vai ser mesmo assim: um comentário de roda-pé com possibilidade de ser lido na hora ou dias depois.
Concordo que essa aplicação, assim como outras estão a transformar-nos em zombies: basta olhar para os ocupantes de um comboio, ou mesmo para quem anda na rua: totalmente alheado do que se passa à sua volta.
A culpa da alienação da sociedade é das aplicações, já escreveu um barbudo alemão.
Sigo sempre a Carla Romualdo. Pelos conteúdos, mas também pela prosa.
Não entendo: as pessoas não usam o email porque tem muito spam, e em vez disso usam o WhatsApp que tem mensagens a mais? Ao fim e ao cabo, mantem-se o problema: mensagens a mais.
E porque não usam o vulgar SMS? Que vantagens tem o WhatsApp em relação ao SMS?