Frente a uma televisão aparelhada de pequenas engenhocas luminosas – para ver vídeos, fotos, partilhar, sincronizar – sentei-me no sofá, esse que diz o Millás que é como se estivesse conectado à televisão porque esta parece ligar-se sozinha quando alguém se deixa cair sobre aquele, sentei-me a aborrecer-me, e em vez de ver o que havia para ver, e que é agora praticamente tudo o que há no mundo – coisa que pode levar a vida toda, queira eu assim gastá-la – em vez disso comecei a ouvir, naquela estação de rádio que passa só na cabeça de cada um, o “Satellite of love”, e onde se diz, com enganadora inocência “Gosto de ver coisas na tv”.
De maneira que desliguei a televisão com o simples mas árduo gesto de levantar-me do sofá, peguei no meu manual de astronomia, e saí para a varanda para tentar, mais uma vez sem sucesso, decifrar os céus. Lá estava Vénus, facilmente identificável para qualquer amador. O resto é sempre um mistério.
O Lou Reed ainda cantava na minha cabeça, lá ia o satélite do amor (dele) a caminho de Marte, não de Vénus. Em qualquer caso, essa nunca foi uma canção sobre os avanços da aeronáutica. Antes um modo de fingir desapego sobre o amor e a traição.
Frente ao céu ilegível, decifrei, num lampejo de sorte, Denebola, Beta Leonis, jovenzita, umas poucas centenas de milhões de anos, a cauda do Leão, magnífica. A alegria de um astrónomo amador é um pouco patética, mas nem por isso menos bonita. E então senti-me observada, ou isso interpretei depois. Era uma das vizinhas, a que ganha a vida a vender mezinhas e bruxedos. Olhava-me com curiosidade, talvez com algum sentimento fraterno que me pareceu abusivo. Não sei que convocava ela, mas eu nem sequer o Lou Reed. Um ligeiro aceno com a cabeça e fechei o mapa dos céus. Ala! para dentro.
A televisão mantém-se apagada, os satélites a caminho de Marte, a bruxa sozinha na sua varanda. Despeço-me de Denebola e ligo o Lou, para que cante agora fora da minha cabeça.
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Certo.