Brevíssimo apontamento acerca do javardo

…. se não havia à mão arco ou besta, tinha o caçador de acercar-se aos braços do urso ou aos galhos do cervo ou aos dentes do javardo.
—  José Saramago

***

Há quem tente chutar para canto a actualíssima notícia do javardo, por achar que se trata de uma questão de lana caprina ou, pior, por pensar que Sérgio Conceição tem razão. Como fui leitor compulsivo de Horácio (na Reclam), sou particularmente sensível à questão da ‘lana caprina’: alter rixatur de lana saepe caprina. Como leio dicionários (muitos), creio que Conceição poderá não ter razão.

Passo a explicar rapidamente a questão javardo e, depois, dir-vos-ei ao que venho.

Francisco Seixas da Costa, antigo diplomata e ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus, foi condenado ontem pelo Tribunal do Bolhão a uma indemnização de 6000 euros e a uma multa de 2200 euros, por causa deste chilreio:

Segundo a juíza,

Somos livres de entender que uma pessoa tem má educação, mas a palavra conta e a palavra tem peso. É diferente dizer que é grosseiro ou que é javardo. Podia ter dito tudo o que disse sem ter usado a expressão em causa. Aqui mostra-se a linha que não se deve ultrapassar.

Ora, uma das acepções atribuídas pelo Priberam a javardo é

Que ou quem não tem boa educaçãoque ou quem mostra falta de cortesia ou de delicadeza.

Cá está o boneco:

Primeira pergunta: o que me acontecerá se chilrear que Sérgio Conceição é alguém que não tem boa educação e mostra falta de cortesia ou de delicadeza? E se acrescentar que não vale a pena estar com eufemismos e que os adeptos do FCP que se revêem no estilo de Conceição não têm boa educação e mostram falta de cortesia ou de delicadeza?

Segunda pergunta: um juiz tem o poder discricionário de dar mais importância ao significado que atribui à entrada de um dicionário do que à definição consagrada pelo próprio dicionário?

Há terceira e quarta (e até quinta e sexta) perguntas, mas guardo-as para outra altura.

Traduzi a primeira pergunta para chilreio, a meio da tarde, cerca de três horas antes de este texto ser publicado.

Como escreveu o excelente Walter Scott,

One hour of life, crowded to the full with glorious action, and filled with noble risks, is worth whole years of those mean observances of paltry decorum, in which men steal through existence, like sluggish waters through a marsh, without either honor or observation.

Veremos o que me acontece.

Nos dicionários da Porto Editora, a acepção de javardo lá em cima aduzida não é integrada. Dou-vos o exemplo do menino que tenho cá em casa:

Por que motivo terá a juíza ignorado/desconsiderado a acepção do Priberam, aliás, a par dos dicionários da Porto Editora, um produto reconhecido e abundantemente citado pela jurisprudência portuguesa?

Exemplos desse reconhecimento? Só cinco, porque há outras coisas a fazer:

  1. «Resta-nos a expressão “Chavalo”. Será esta uma expressão ofensiva da honra e reputação do militar visado? Não cremos que seja. Consultado o dicionário pode ler-se “ Diz-se de um indivíduo adolescente, jovem”- “chavalo”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/chavalo. a utilização de tal expressão, muito embora possa considerar-se “calão” não tem qualquer sentido pejorativo da dignidade do militar, porquanto a mesma é utilizada para designar pessoa jovem».
  2. «Assim, dizer para alguém “vai para o c******” é bem diferente de afirmar perante alguém e num quadro de contrariedade “ai o c******” ou simplesmente “c******”, como parece ter sucedido na situação em apreço nestes autos. No primeiro caso a expressão será ofensiva, enquanto que, ao invés, no segundo caso a expressão é tão-só designativa de admiração, surpresa, espanto, impaciência, irritação ou indignação (cfr. Dicionários da Língua Portuguesa da Priberam e da Porto Editora 2010)».
  3. «A definição de reiteração plasmada no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org, é a de “Ação [sic] ou efeito de reiterar; repetição; renovação”».
  4. «Retomando ao caso concreto, temos como adquirido que o arguido disse em voz alta, referindo-se ao assistente que acabava de entrar em casa, “Olha filha! Chegou o abutre!”. Em sentido figurado, o termo abutre pode significar agiota, a pessoa que anseia ou deseja o desaparecimento ou a morte de outrem para daí obter bens ou vantagens http://www.priberam.pt/dlpo/abutre, pessoa que tira proveito da desgraça alheia, homem usurário, cruel Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 6ª edição».
  5. «Qualidade: “Função exercida, título a que correspondem direitos e obrigações; condição social”, “Condição social, civil, jurídica, título…sob o qual as partes figuram num acto jurídico ou num processo”, “Aptidão”, “título, categoria”, “Condição social, civil, jurídica” ou “Modo de ser” (v. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia de Ciências de Lisboa, Verbo, 2001, Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/estado, consultado em 28-06-2016, e Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Cândido de Figueiredo, 1913, disponível em http://www.dicionario-aberto.net/dict.pdf)».

Veremos o que nos reserva o recurso anunciado. Por falar em recurso, alguém sabe como está o andamento destoutro processo? É para um amigo.

Continuação de uma óptima semana.

***

Comments

  1. C Almeida says:

    Perfeitamente discriminatório esse termo

    • Tuga says:

      Tem toda a razão. Há muitos mais e só falam no Conceição

      Ele´e mesmo discriminado dos outros. Alguns deles ate mandaram atirar pedra à família. do Sérgio e nunca se vai conhecer o mandante

  2. Anonimo says:

    Poderia ter dito que exmo sr mr treinador do Futebol Clube do Porto é assim a que termos rude, quiçá de trato difícil.
    Nem sequer carroceiro, porque além do atentado à honra implica que o visado explora um animal indefeso em seu benefício próprio, sem autorização deste.
    Esse senhor que ponha os olhos no treinador queixoso, um modelo de comportamento verbal e físico.

  3. Paulo Marques says:

    Os excelentíssimos gostam muito do respeitinho, e longe de mim sugerir onde o podiam enfiar, junto com o resto dos salazarentos.
    Já de javardice, o dito personagem deverá ser um especialista, e só por isso o Sérgio já merece apoio por levar a tais exaltações de mais puro e fino carácter.

  4. Anonimo says:

    Burgesso seria aceite?

  5. Luís Lavoura says:

    Se for ao dicionário, também chegará à conclusão que “filho da puta” significa qualquer coisa como “filho de uma mulher que pratica a prostituição”, o que, obviamente, nada tem de mal nem de insultuoso.

    Ou seja, se formos pelo dicionário, nem “javardo” nem “filho da puta” são insultos, são simples afirmações inócuas.

    Não devemos ir pelo dicionário, mas pelas conotações das palavras.

    • Joana Quelhas says:

      Muito bem observado.
      No entanto suponhamos que o individuo tinha dito :
      ” O meu vizinho é um filho de uma prostituta! “.
      O ofendido neste caso, mesmo assim podia queixar-se ao tribunal ?
      Se sim o tribunal teria de averiguar a veracidade da afirmação ?
      Mas então, no caso do “javardo”, o tribunal teria de averiguar da veracidade e só poderia condenar a falsidade da afirmação ?

      Joana Quelhas

      • Paulo Marques says:

        Eu sei que não percebe muito disto, mas o tribunal não averigua. E os excelentíssimos, ao contrário do sistema de regras em que estamos inseridos, usam a parva lei portuguesa para defender o direito ao bom nome acima da verdade. Imagino que até concorde com isso, desde que passem no teste de gente de bem.

        • Anonimo says:

          Cabia `à defesa provar a javardice do queixoso.

          Há ainda a questão de saber se a javardice, associação de mau comportamento ao javardo, é em si só um crime, pois o javardo enquanto mal-educado é uma construção humana, e não uma apreciação fidedigna das características do animal.
          Tal como “Pegar um touro pelos cornos” deve ser, numa sociedade evoluída, expressão banida, associar os maus costumes do treinador Sergio ao Javardo não pode ser admitido. O Javardo tem o seu direito ao bom nome e não deve ser difamado.

          • Paulo Marques says:

            Tal como não se pode chamar gatunos aos senhores com apito com decisões ridículas, contraditórias, e facciosas, nem avençados a quem o defende. É a justiça, pá.

  6. Augusto Faria says:

    É verdade.

  7. André Rodrigues says:

    Gostei muito do texto. Embora seja estudante de Latim e Alemão, não me atiraria a um Horácio, com a ajuda da tradução alemã na página ao lado. Mas muito agradeço a sugestão.

  8. Professor B says:

    O Senhor Embaixador tem de explicar o que é revir-se no estilo…

  9. João Soares says:

    Amigo Baladas,os teus indices de raiva à cidade do Porto e ao FCP são tão grandes e absurdos que só se atenuariam se fosses dormir com a(o) esposa(o) do sr. Embaixador. Kkkkk !!!

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