Códigos Deontológico-Higiénicos

Créditos: Marie Hanrahan

O mundo corre a uma velocidade estonteante. Facilmente recuo quase dez anos, a 2016, ano da primeira eleição de Donald Trump, e recordo uma vida menos frenética. Não idílica, já que os sinais já lá estavam todos, mas a um nível bem diferente do que vemos hoje. Ou talvez se disfarçasse melhor.

Os últimos dez anos foram um esboroar completo de tudo o que eram linhas vermelhas da convivência em sociedade. Se há dez anos estávamos longe de um paraíso social, a verdade é que no tempo entretanto passado olhamos para a distância que nos separava da utopia inalcançável e decidimos andar em sentido contrário.

Vozes há que se rasgam a apontar o dedo a um suposto raciocínio hipócrita, considerando que, quem não se revê no estado actual de coisas, prestava vassalagem ao anterior. São vozes enfermas do maniqueísmo dos tempos. Depois de tanto chorarmos pelo aborrecimento cinzentão de uma classe política e social cristalizada, eis-nos hoje a fazer o luto da escala de cinzentos.

A polarização do espaço público não é novidade para ninguém. Aliás, parece que nenhum assunto é novidade para alguém, com a saturação de informação que polui o espaço mental no qual todos somos (éramos?) vizinhos. Passamos de jardins comunitários para condomínios fechados (juro que não era uma crítica neoliberal, mas…) e o mundo tornou-se uma cacofonia de gritos onde ninguém se ouve e onde, curiosamente ou não, o pão também vai faltando.

Assim não é de espantar ninguém ver e ouvir os comentadores de debates televisivos suspirar por um duelo, um ataque, um “debate quentinho”. A moderação é aborrecida, não faz ninguém ligar a televisão, nem cria engagement nas redes. Não dá bons cortes. Hoje, todos querem sangue, barulho, infernos comunicacionais. Debates que emulem velhas discussões de mini na mão e palito na boca fazem salivar os engravatados analistas. Eles, as redacções, os grupos empresariais de imprensa, todos aqueles que trocaram o papel higiénico pelos códigos deontológicos, permitem que os auto-proclamados salvadores dos sistema estabeleçam um novo conjunto de regras, pelas quais somos agora todos avaliados, perdendo sempre pela experiência quando chafurdados na lama.

Serão estes, também, aqueles que nos dirão, um dia, que a liberdade está a ser atacada. Analisarão até à exaustão, em directos, todos os ângulos desse novo normal, sem por um segundo apontarem para si.

Cavaco fez escola. Se um homem que foi primeiro-ministro e Presidente da República durante quase vinte anos consegue olhar à volta e pensar “Eu não tenho nada a ver com isto”, porque não iria o país dos Srs. Drs. seguir o exemplo?

Vamos todos caindo em câmara lenta, com os dedos em riste apontados a uns e outros, assinalando que este ou aquele foram os responsáveis pela queda. Na verdade, uma altura em que as culpas colectivas voltaram a estar na moda, embora selectivas, talvez esta seja a única válida, a excepção que confirma a regra. Quando todos nos divorciámos de fazer a nossa parte para tornar o mundo um lugar melhor, uns porque activamente contribuem para a destruição, outros porque se remetem a um silêncio e a uma paralisia cúmplices, teremos tantos dedos apontados aos outros como a nós mesmos.

Ainda vamos a tempo?

 

Comments

  1. JgMenos says:

    Meter a deontologia no ruído é negar-lhe o significado.
    Já a higiene, recomendando o afastamento, está na sua área de intervenção.

  2. Para haver polarização do espaço público, tinha que haver extremos no espaço público, mas apenas há um extremo e um centro a ceder cada vez mais e mais rápido a esse extremo; e é assim que os donos querem, percebendo que o sistema não funciona, têm a alternativa do costume.
    Infelizmente para eles, continuam sem perceber que o resto do mundo se marimba para os “valores ocidentais”, seja o centro do império desesperadamente à procura de lucro, seja o resto, no mínimo, a perceber que destruímos a capacidade de compra, mas também que a prosperidade ou sobrevivência deles é-nos completamente acessória.

  3. Anonimo says:

    As discussões de mini (ou copo de três) na mão eram bem mais civilizadas e enriquecedoras que as actuais

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