Poesia & etc.: José Gonçalinho de Oliveira

Neste grupo, José Gonçalinho de Oliveira é o segundo do plano mais elevado, junto da porta central. A fotografia data de 1962.

Entre as pessoas que conheci em Vila Real quando ali cheguei em 1961, estava um homem discreto, mais velho do que os demais elementos do grupo a que António Cabral me apresentou, o grupo do Movimento Setentrião. Tinha, nessa altura, 45 anos (a idade de meu pai) e aos meu olhos de jovem com pouco mais de 20 anos, afigurava-se-me um respeitável ancião.

Surpreendia, no entanto, a par do seu ar compenetrado e sério, parco de palavras – em contraste com a exuberância dos outros elementos, Cabral incluído, surpreendia, dizia eu, um sentido de humor agudo e a propriedade com que colocava as suas tiradas. Parecendo, à primeira vista, uma carta fora daquele baralho, depressa percebi que era um elemento valioso do grupo, um homem inteligente, alegre e espirituoso à sua maneira. [Read more…]

Memória descritiva: o Movimento Setentrião

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Nesta fotografia dos coordenadores da revista Setentrião (nºs 2 e 3), datada de Julho de 1962, vemos da esquerda para a direita, António Cabral, Carlos Loures, Eduardo Guerra Carneiro e Ascenso Gomes.
Cheguei a Vila Real ao meio-dia de 28 de Dezembro de 1961. Partira de Lisboa na véspera com o António Barahona da Fonseca e a Luiza Neto Jorge, na altura casados. Ele ia ocupar o lugar de Encarregado de Biblioteca numa cidade a Norte, Bragança, salvo erro. Viajámos no carro da biblioteca itinerante dele, conduzido pelo respectivo motorista. O carro-biblioteca que me era destinado e que estava em Vila Real desde o dia 22, ardera completamente com o seu recheio de 5000 livros. Eu iria utilizar um carro velho que chegaria de Lisboa, antes da inauguração cuja data seria cumprida. A Gulbenkian encomendara já outro carro à Citroën. [Read more…]

Clube dos Poetas Imortais: António Cabral (1931-2007)

 

António Cabral foi um dos maiores poetas da região de Trás-os-Montes e Alto Douro. Melhor: foi um dos maiores poetas portugueses do século XX. Não provocando o clamor mediático de um Torga, a sua poesia atingiu uma qualidade incomum e à qual, até agora, não se fez a devida justiça. Mas nem só poesia escreveu, pois da sua bibliografia constam, além de 15 colectâneas poéticas, cinco volumes de ficção e sete volumes de teatro. Para além de livros didácticos e de ensaios literários.

Publicou também obras sobre etnografia e antropologia, nomeadamente sobre jogos populares, matéria em que se tornou um grande especialista. A ele se deve ainda um dos mais belos textos escritos sobre José Afonso, «Introdução às canções de José Afonso», publicado no livro «Cantar de Novo» (Nova Realidade, 1970). Neste clube tenho incluído grandes poetas da lusofonia, alguns deles meus amigos. É o caso do António Cabral com o qual colaborei e que comigo colaborou em numerosas iniciativas. Um bom amigo e um grande escritor.

 

 

 

António Cabral nasceu em Castedo do Douro (Alijó) em 30 de Abril de 1921 e faleceu em 23 de Outubro de 2007 em Vila Real. Sacerdote católico até 1972, pediu dispensa e casou, dedicando-se ao ensino. Além de grande poeta, dramaturgo e romancista, foi um activo agente cultural, sendo co-fundador das revistas Setentrião e Tellus. Vemo-lo na fotografia com Amadeu Ferreira, o escritor e principal defensor da língua mirandesa. De António Cabral escolhi o poema Acorda amor, publicado na antologia poética «Vietname», que organizei em colaboração com Manuel Simões. Parece-me dar uma ideia do grande poeta que é o «imortal» que hoje vos apresento – Meus amigos, deixo-vos na companhia de António Cabral:

            Acorda amor

            Acorda, amor. Não ouves o silêncio

            ranger à volta da nossa casa?

            Algo se passa. As aves na palmeira

            do pátio acabam de estremecer.

            Ouço-as pelas frestas da velha parede

            e o medo volta de novo ao meu coração.

            Bem sei que não devia ter medo, que o sono

            é esse doce país cantado pelo poeta,

            onde os rios não correm somente

            para demarcar os ódios, e as nuvens

            apenas ocultam a boa água fertilizante.

            Condeno-me por isto. Por tremer

            diante dum pensamento e acordar, a teu lado,

            quando um leve sussurro atravessa a noite.

            É como se a tua presença não bastasse,

            fechando não sei que porta imaginável.

            Desculpa, amor. Mas tremo. A teu lado.

            Apesar do teu rosto amanhecente.

            Mesmo sabendo que em teu corpo

            Se abriu a corola de todas as delícias.

            Pelas frestas da velha parede,

            eis-me a interrogar a noite. Que acontece?

            Que sombras se movem além do rio?

            Talvez eu delire, ainda sob a impressão

            Do último bombardeamento. Lembras-te?

            Num momento, destruiram os favos

            da nossa alegria. E o mel de tantos anos

            barbaramente se diluiu na enxurrada infernal.

            Foi como se enorme sanguessuga de repente

            se colasse a nós. Ainda tremo .

            Tu escondeste a tua cabeça no meu peito

            e eu quando acordei sob os escombros,

            tinha uma perna destroçada. Podia ter as duas.

            Não é isso que me faz tremer. Mas recordo

            a febre dos teus lábios em minhas mãos,

            o quadro dos teus cabelos outonais

            e o corpo do nosso filho, parado, no teu regaço.

            Perdoa, amor, esta lágrima. Não acordes.

            Se eles voltarem, cobrir-te-ei com o meu corpo,

            com este corpo inútil que me deixaram.

            Não acordes, amor. Em que estrela

            bus
ca
s agora o nosso filho? Que palmeira

            o acolhe à sua benigna sombra?

            Ele põe a mão na rosa do teu seio

            e nos teus lábios ardem pétalas. Meu filho!

            Lembras-te como eu gostava de o levantar

            bem alto? Meus braços, agora débeis,

            fremiam, reverdeciam como ramos,

            e tu dizias, luminosa: o tronco e a flor.

            Era como se o dia voltasse a nascer,

            nascesse a cada instante,

            cingindo-me aos teus olhos belamente doirados.

            Era. Agora, não. Agora é noite. Prolongada.

            Não durmo. Doem-me as pálpebras e a alma.

            A paz escoa-se pelas frestas da parede.

            Que sombras se movem aquém do rio,

            fazendo ranger todo o silêncio?

            Se vierem… que venham. Dorme, amor.

            Amamenta em sossego o nosso filho.

            se vierem,

            Cobrir-te-ei com o que resta do meu corpo.

 

A máquina do tempo: isto anda tudo ligado

O escritor e jornalista Eduardo Guerra Carneiro, um amigo que desde o dia um de Janeiro de 2004 já não está entre nós, deu como título a um seu livro de poemas «Isto Anda Tudo Ligado». E este título, como disse Jorge Listopad, numa nota publicada na «Colóquio-Letras», que aparentemente é um «slogan banal», quase um lugar-comum, tem sido centenas de vezes utilizado, por escritores, jornalistas, por músicos (como o Sérgio Godinho)  e não só. Creio que muitos que o utilizam já nem o relacionam com o grande poeta e a maravilhosa pessoa que foi o Guerra Carneiro. Não é o meu caso. Fui amigo e companheiro de luta do autor destas palavras. Evoco a conhecida frase «Isto anda tudo ligado» homenageando a memória do Eduardo.

 

 

 

 

 

Nesta fotografia, tirada em Novembro de 1962, em Coimbra, da esquerda para a direita podemos ver o Egito Gonçalves, eu, o Eduardo e o António Cabral, ainda sacerdote católico na altura. O Eduardo, de perfil, parece ausente, alheado, coisa que lhe acontecia com frequência. Talvez estivesse preocupado com a eventual presença nas proximidades de algum agente da PIDE.

 

 

Fomos ali reunir-nos por questões políticas e culturais – a expansão do Centro de Cultura Ibero-Americana, que pretendíamos alargar editando um boletim periódico multilingue (nos idiomas da Península a que juntaríamos resumos em francês e inglês). Mas voltemos ao Guerra Carneiro e ao seu livro.

 

Não era em globalização, na famosa globalização de que hoje tanto se fala, que o Eduardo pensava quando, em 1970, publicou o livro por acaso numa colecção da Ulmeiro onde também publiquei uma colectânea de poemas. Era na dimensão dialéctica do Universo na qual, de facto, tudo se relaciona e interage. Música, literatura, desporto, política, vida quotidiana, são fragmentos indissociáveis de uma mesma realidade que por comodidade e hábito de classificar, dividimos em compartimentos.

Fui passar esse fim do ano a Vilamoura (onde só consigo ir sem ser no Verão) e, no dia três de Janeiro, um sábado, estava na esplanada do Paulo China a ler o Expresso quando me saltou aos olhos o nome do Eduardo numa pequena notícia – Fora encontrado morto na madrugada do dia um num pátio subjacente ao seu terceiro andar. Presumivelmente suicidara-se, adiantava a notícia. Às primeira horas do novo ano. Quando regressei a Lisboa, logo telefonei a um amigo comum, o José Quitério. Sim, confirmou, o Eduardo suicidara-se. Poucos dias antes ao telefone tinha dito ao Quitério isso mesmo, que estava farto, que a vida não lhe interessava. O Zé pensou que fosse apenas um dia mau e que aquilo passasse. Não passou.

 

A última vez que estive com ele, pouco tempo antes, almoçámos juntos num restaurante perto do meu escritório. Trouxera-me alguns dos seus livros que eu  não tinha ainda lido e combinámos que iria colaborar num projecto editorial da empresa. Estava bem disposto, recordámos os velhos tempos de Vila Real, do Setentrião, do António Cabral e do Ascenso Gomes. Mas acabou por não fazer o tal trabalho – foi-me telefonando e adiando. Até àquele dia.

 

 As coisas não lhe tinham nunca corrido bem. Interrompera os estudos universitários por lhe parecer inútil o curso que frequentava. Profissionalmente, jornalista, um bom jornalista, diga-se, tinha de fazer muita coisa de que não gostava. Na vida privada, casamentos falhados, o refúgio no alcoolismo e, sobretudo, o suicídio inexplicável da sua filha, a  Catarina, destruiu a sua capacidade de resistência, provocaram-lhe o cansaço da vida que confidenciou ao Quitério. A soma de tudo isto resultou numa rápida viagem de três andares até ao cimento do pátio.

 

Quando estas coisas acontecem, ficamos sempre com uma sensação de culpa, com a ideia que poderíamos tê-las evitado conversando, acompanhando, ajudando. Porque, no fundo, quando estas coisas acontecem, todos temos, de facto, culpa por ajudarmos a manter um mundo em que tudo anda ligado, mas no qual não sabemos conservar entre nós pessoas como o Eduardo que, depois de desaparecerem, verificamos tanta falta nos fazerem.