Rodrigo Leão

Rodrigo Leão

Lá fora chovia copiosamente. Era sábado, a primeira noite de um fim-de-semana prolongado. Nos écrans de televisão estava a dar o sporting-benfica.

Fomos mais de três mil que viramos costas a tudo, ao futebol, às mini-férias de Dezembro, ao aconchego de nossa casa. No dia em que soube que eles vinham ao Porto, tratei de vida. Foram três notas de vinte aplicados em prenda à patroa. Nem que chovessem canivetes, pensava eu, longe de saber que não foram canivetes mas penicos dela. “Vida tão estranha”, canta a Ana. “Como uma corda tensa vivo o dia-a-dia” e são estas noites de magia que nos aliviam a alma. E que noite, meus caros amigos e amigas, que noite!

Era a primeira vez que o Coliseu se enchia para os receber. Francamente, dei por mim a pensar que estava a sonhar. Como um Porto Vintage, um jantar no D.O.C. ou uma escapadela no Alentejo profundo, imaginem um concerto que juntou tudo o que de bom se faz em Portugal. Agora que estão a imaginar e o deslumbramento vos invade, eis encontrada a definição para este concerto de Rodrigo Leão e os Cinema Ensemble nesta noite de verdadeira magia.

Nas suas faces, perante um Coliseu pelas bordas, via-se o nervoso miudinho. Todos os artistas, incluindo muitos dos internacionais que nos visitam, sabem que este público é especial. Exigente e duro mas de uma entrega genuinamente total quando perante a excelência. E isso pesa, se pesa, na cabeça de qualquer artista. Foi aqui que vi a Beth Gibbons chorar como uma menina tal o ambiente electrizante com que o Porto recebeu os Portishead e a surpresa estampada no rosto de Lila Downs na Casa da Música mas também um certo distanciamento de boa parte da assistência quando os Feist por cá passaram e que dizer da loucura instalada aquando do concerto dos Placebo? Somos assim, ou tudo ou nada.

Esta foi a noite da consagração de Rodrigo Leão e dos Cinema Ensamble no Porto. Merecida, mais do que merecida. O Rodrigo Leão é o maior génio vivo da música portuguesa e só se espanta quem não conhece. Mas esta foi uma noite especial, muito especial para a Ana. A sua voz é divina. A forma como começou nervosa, quiçá receosa perante tantos e tantos e se superou por via de uma entrega total e absoluta, numa comunhão perfeita com os músicos, marcou-me profundamente e, tenho a certeza, a todos os presentes. Foi uma dádiva.

A Ana Vieira entrou, a partir de hoje, na “minha” galeria das mais notáveis vozes femininas. Mas o que estou eu a dizer? Ó injustiça! Qual Beth Gibbons, qual Lila Downs, qual PJ Harvey ou Laura Veirs ou Yael Naim? Lhasa de Sela? Joanna Newsom? Little Annie ou Teresa Salgueiro? Qual quê? A Ana Vieira é “A Voz”.

O seu canto, em português (perfeito), em francês (maravilhoso), em castelhano (castiço), em inglês (competente), etc, etc, etc, supera qualquer outra.

Ela ali, sozinha perante o holofote de luz, com o microfone na mão direita enquanto a esquerda ajuda a amparar o corpo no tripé, a sentir os instrumentos e a embalar o público num êxtase completo cantando “a minha alma chama por ti” e, no fim, o calor das palmas, dos gritos de “bravo” e ela, a sorrir envergonhada como uma criança e com as mãos abertas com os dedos esticados, muito hirtos, como dez pequenas barras de ferro, fugindo da nossa vista. Ela fugiu, refugiou-se atrás da cortina preta enquanto o Coliseu vinha abaixo numa enxurrada de palmas e palmas e palmas. Ela fugiu talvez querendo manter escondido este que foi, até hoje, o maior “Segredo” da nossa música e eu “Em vão procuro as palavras” que expliquem o que hoje aconteceu e só “peço mais uma vez ao tempo” que me permita voltar a assistir a uma noite assim.

O Porto é assim, grato perante o sublime, insistiu incessantemente para um regresso ao palco e no que foi retribuído. Mas não chegou e, uma vez mais, quando o Coliseu já tremia, outro regresso com repetição de temas fruto, julgo eu, da surpresa, outros não estavam preparados. São assim as noites de apoteose. São assim as noites mágicas.