Burcas e outros adereços performativos

Pode ser uma imagem de uma ou mais pessoas e a lenço para a cabeça

Acho que já podemos parar de fingir que esta decisão de proibir as burcas tem alguma coisa a ver com o bem-estar das mulheres muçulmanas.

Porque isto partiu dos mesmos que querem a mulher recatada, obediente e do lar.

Dos que enchem a boca para falar de segurança e a seguir assobiam para o lado quando são confrontados com os números da violência doméstica.

E foi parida no mesmo partido onde há quem defenda a remoção dos ovários das mulheres que decidam abortar, a ponto de levar a proposta a congresso e receber o apoio de 15% dos delegados.

O mesmo partido que construiu um altar ao abusador e possivelmente pedófilo Donald J. Trump, cujo regime autoritário em construção acelerada abafou o caso Epstein.

E porque, se estas mulheres forem casadas com fanáticos, deixarão simplesmente de sair de casa.

Podemos parar a encenação, não acham?

Eu acho.

E estou perfeitamente à vontade no que toca a este tema. Sou totalmente contra qualquer tipo de imposição autoritária baseada na tradição ou na religião. Seja a excisão genital, sejam os casamentos com menores, sejam as burcas. Por mim, tudo isto seria ilegal à luz da lei. Portugal é um Estado Laico, comporte-se como tal.

Mas esta lei não tem nada a ver com isso ou com o bem-estar das mulheres muçulmanas.

Isto é só mais uma guerra cultural.

Uma guerra cultural que nos distraí do essencial.

Da crise na habitação.
Da erosão da democracia.
Do ataque aos direitos laborais.
Da degradação dos serviços públicos.
Do aprofundar acelerado da desigualdade.
Do apetite privatizador que espreita na esquina.

É natural que nos queiram empurrar para (mais) uma guerra cultural. Andamos nisto há anos. E há uma certa esquerda, pateta e inútil, que fez todos os fretes possíveis a esta direita woke, que grita “liberdade”, mas quer censurar livros, cancelar críticos e prender adversários políticos. E, se possível, corromper e ser corrompida para lucrar ao máximo enquanto o poder o permite. Veja-se o trumpismo.

E porque, convenhamos, se não estivermos distraídos com guerras culturais, podemos tomar consciência de que o nosso grande problema não é cultural, não é religioso e muito menos de segurança.

O nosso problema é a desigualdade.

Uma desigualdade cada vez mais gritante, profunda e inaceitável, que se manifesta de formas tão distintas como na inflação, nos salários e nas borlas fiscais que se dão aos mais ricos entre os mais ricos, que conseguem a proeza de fazer com que os mais pobres entre os mais pobres acreditem que foi o imigrante que lhes levou a bolacha, quando é precisamente a microelite que patrocina os novos fascistas e as guerras culturais que as levou quase todas.

E essa elite quer-nos entretidos e zangados com questões secundárias. Porque enquanto assim é, dividem-se aqueles que são esmagados pela desigualdade, que de tão cansados que ficam de lutar uns com os outros, não conseguem mobilizar-se para combater os seus verdadeiros problemas, na habitação como na degradação dos serviços públicos.

Agora, são a meia dúzia de burcas que existem no país.

Ontem, eram as casas-de-banho mistas que nunca existiram.

Amanhã será outra coisa qualquer, igualmente inócua ou inexistente.

Por cá temos burcas, mas os EUA já estão uns patamares abaixo. Agora que se tornou normal colocar a guarda nacional na rua, mandar gorilas encapuçados deter violenta e indiscriminadamente, ameaçar aliados com ocupação militar ou usar a máquina do Estado para os negócios da família Trump, novas ideias emergem. Desde o household voting, em que o direito ao voto da mulher desaparece e a sua existência política passa a ser decidida pelo marido (à imagem dos maridos que impingem burcas às mulheres), até à discussão sobre o regresso da escravatura, como defendem alguns podcasters e YouTubers MAGA, para não falar no ataque feroz à laicidade do Estado e à separação de poderes.

Levem-se lá as burcas, que também não fazem cá falta nenhuma, mas admita-se, de uma vez por todas, que o plano dos proponentes é regressar ao Estado Novo. Seria importante, para um debate público esclarecido, que estas pessoas saíssem das suas próprias burcas. E que não se esqueçam que o precedente aberto, em que um Estado laico interfere na religião, poderá um dia rebentar-lhes nas mãos. No pun intended.

Comments

  1. Tem tanto a ver com burqas que tais não vêm mencionadas na lei. Como admitiu um comediante da assembleia no programa que passa por epitome do humor, é sobre garantir a videovigilância e identificação de todos, quem sabe com a ajudinha da Palantir ou do NSO Group que tanto sucesso têm por esse europa fora. Apressou-se a garantir a isenção do IRA de ser abrangido, e outros grupos de amigos terão aplicação selectiva do que, se for para levar à letra, também acaba com os disfarces de Carnaval ao Natal.
    Nada é por acaso, as escolhas da eurolândia já estão feitas.

    • Na verdade, o argumento é curioso: diz-se que a lei “não fala em burcas”, mas o discurso político que a acompanhou deixou bem claro o alvo simbólico. A invocação da “segurança” e da “videovigilância” serve, como tantas vezes, para normalizar medidas de controlo e restringir liberdades sob um pretexto tecnocrático.

      A ironia é que se fala em “identificação” e “transparência” para os cidadãos comuns, mas não para os grandes interesses que decidem quem é vigiado e quem não é. Quando o poder público começa a regular a forma de vestir em nome da segurança, estamos a deslizar para uma sociedade de desconfiança, não de liberdade.

      E sim, nada é por acaso. Talvez o verdadeiro motivo não esteja nas burcas, nem nos disfarces de Carnaval, e sim na consolidação de um modelo político que prefere o controlo à convivência.

      Todos os partidos que apoiam a lei da burca são, curiosamente, aliados próximos de Israel. No entanto, em Israel – onde se encontram muitas mais mulheres que usam niqab – isso nunca foi considerado uma ameaça à segurança nacional.

  2. blizzardexactlyd7741a8fc1 says:

    Finalmente João Mendes começa a abrir os olhos. E até a ser MENOS amigo dos yanques vejam lá.

  3. O que parece, mais relevante, é gente , que se diz de esquerda a defender esta lei, apresentada e defendida por deputados, que se dizem defensor da constituição, e fazem entrevistas, apelando de um novo ditador fascista Salazar! Creio que esta tudo dito, a não ser que tenham dúvidas, mas se as têm, creio que devem consultar um medico, o mais rápido possível!

  4. Caro João Mendes, assino por baixo do que escreveu.

  5. JgMenos says:

    O rebéu-béu habitual…
    – ‘o partido onde há quem defenda…’ – que chocante!
    – ‘a violência doméstica’ em que sempre visam os machos e para as tadinhas sempre reservem o direito de infernizar a vida a título e uma caterva de direitos, que isto de falar em deveres é sempre um não assunto.
    – E sempre a demonização do Estado Novo, sabendo nada do que que o precedeu e do que nele ocorreu, senão que se proclamavam deveres, anátema maior para a cambada abrilesca!

    • Pancada e violação, só para os maridos católicos brancos.

    • POIS! says:

      Pois é!

      Demoniza-se o Estado Novo, quando este tinha um modelo de família exemplar: o viril cavador, a humilde dona de casa, o varonil lusito sempre em farda da Mocidade e a menina a brincar com tachinhos, panelinhas e bonecas bonecas até aí aos 14 anos, para depois passar a brincar com os tachos, panelas e bonecas vivas.

      Agora o modelo é o do macho amanuense e da tadinha operadora de loja, acompanhados do machinhinho influencer e da tadinhinha bailarina no TikTok.

      E sim, no Estado Novo proclamavam-se deveres, o principal dos quais era o dever de não questionar os outros deveres.

      Até me lembro de um rifão dito pelo povinho, lá na minha terrinha:

      “Se os deveres ousares questionar, da PIDE vais apanhar!”.

      Dizia o povinho. Lá na minha terrinha!

  6. bolas says:

    burcas…

  7. francis says:

    E eu a pensar que esta lei era para proibir a ocultação do rosto, para bem (segurança) de todos. E que se as senhoras não se sentem bem a ter que mostrar a carinha laroca podem sempre emigrar para paises islâmicos onde a burca tambem é proibida. Até deviam ter proibido o uso de capuz nas manifestações publicas, com mão pesada para os que os usassem.

  8. O "Mascarado"! says:

    Esta conversa da ocultação de rosto e da importância da video vigilância é uma absoluta palhaçada!
    Eu posso andar na via pública de máscara cirurgica e de óculos escuros e gostaria de saber que sistema me conseguiria identificar! E que eu saiba não estou a infringir lei alguma!
    Enfim, mais uma vez a justificação não colhe com a prática! Palermisses!

Trackbacks

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