Darth Vader ao tapete

 Cá por casa, nos últimos tempos, e pela mão do meu filho de três anos, cruzámos o umbral da terra dos medos. O vento que uiva lá fora, o estalar de uma viga no sótão, um cão que ladra com fúria numa varanda próxima, um sapo gigante que nos aborda na rua e que se revela afinal campanha publicitária do anfíbio que alberga estas páginas, a densa escuridão que engole o corredor quando os interruptores se apagam.

 

Encontrámos também, é certo, muitas ajudas para vencer o medo: falar alto, cantarolar, acender todas as luzes da casa, dizer muito alto OS MONSTROS NÃO EXISTEM, lembrar a fada Sininho, ir buscar a espada do Dartacão, que às vezes também se transforma numa espada Jedi, dormir agarrado ao ursinho, e tantas outras coisas.

 

E depois é só escorraçar o já esfarrapado medo, enxotá-lo, abrir-lhe a porta para que possa descer as escadas com uma perna a lamber a outra, e ficar a rir dessa figura desengonçada.

Mas ao medo da gente crescida não se expulsa de qualquer maneira.

 

Incrustado na carapaça que nos reveste, agarrado ao estômago, cravado como uma lapa, aceita esbater-se nos dias de sol, mas está sempre a postos, preparado para regressar. Alimenta-se de palavras gordas: futuro, mudança, crise, morte, solidão. E nunca se distrai, o sacana.

 

Há dias, movida mais por uma vaga nostalgia juvenil do que pela necessidade de arranjar entretenimento familiar para um fim de tarde, fui ver uma exposição dedicada à saga da “Guerra das Estrelas” num centro comercial.

Não sabia que à hora a que cheguei começava uma animação teatral acerca dos Jedis, a ordem de cavaleiros sábios que aprenderam a dominar o lado luminoso da Força. Munidos de sabres de luz de plástico (há anos que espero que a alguém ocorra que é disso mesmo que eu preciso para o Natal), os actores convidavam as crianças a subir ao palco para começar a sua formação como Jedis.  

Um pequenito, com sete ou oito anos, e um ar que fazia lembrar o Harry Potter, lá foi, empurrado pelos pais, amedrontado e tímido, para o meio dos Jedis. O espectáculo continuou com umas lições sobre a Força e o manejo do sabre de luz, até que a inconfundível marcha imperial começou a ouvir-se e o miúdo sentiu que alguma coisa má ia acontecer. Darth Vader entrou na sala.

Não se riam se vos disser que eu, que já deveria ter idade para ver tudo isto com a sobranceria dos adultos, estremeci com a entrada da criatura. Este Darth não trazia bandeira monárquica, apenas a capa negra esvoaçante e um sabre carregadinho da energia do lado negro da Força, e a cada passo seu em direcção ao palco, víamos o pobre miúdo ficar cada vez mais pequeno.

Mas não gritou nem fugiu, não chamou pela mãe nem trepou pelas pernas dos cavaleiros Jedi. Ficou quieto e em silêncio, pálido e digno, não afastou o olhar da máscara negra, e quando os Jedi lhe disseram que se concentrasse, erguesse a mão e se juntasse a eles no uso da Força, essa energia luminosa que une todos os seres, e que se nutre da bondade, da sabedoria, da serenidade, vimo-lo agachado em palco, com a mãozita erguida e o rosto sério, concentrado na derrota do lado negro, esse que irrompe da violência, da inveja, do ressentimento, do medo.

E claro que assistimos ao milagre, vimos o colossal Darth Vader vacilar, perder o equilíbrio, e tombar aos pés de um catraio trinca-espinhas, mas cheio de fé.

Uma sala cheia de trintões a braços com o esforço de não se deixar dominar pela inveja aplaudiu o pequeno herói tranquilo.  

Desde esse dia tenho andado a pensar: se ele foi capaz, será que eu também sou?