Uma mente sem mácula

Por fim vi o filme que já tantas vezes me tinha sido recomendado e que, por uma razão ou por outra, sempre estava indisponível quando eu tentava consegui-lo. Em Portugal, onde as traduções de títulos parecem ser feitas pelo método “abramos este livro e usemos a primeira frase que nos apareça”, chama-se “O Despertar da Mente”, o que soa a algo semelhante a um livro de auto-ajuda. No original chama-se “Eternal Sunshine of the Spotless Mind”, algo como “Luz do sol eterna numa mente imaculada”, título inusitado mas que se entende quando se vê o filme, e que é um verso de um belo poema de Alexander Pope. Em síntese, este filme conta a história de um homem que, após uma ruptura amorosa, descobre que a sua ex-namorada recorreu aos serviços de uma empresa especializada em apagar memórias indesejadas para apagá-lo a ele e à sua história em comum.

A empresa, adequadamente chamada de “Lacuna”, efectua os seus serviços com discrição e bons resultados. Ante a perda de um ser querido (num dos casos vemos uma senhora chorosa, segurando no colo os pertences do seu cão morto), uma relação falhada, qualquer desfecho que produza sofrimento, a solução oferecida é a de apagar as memórias e “seguir em frente”. Num momento particularmente delicioso, ouvimos uma chamada de alguém a quem educadamente é recusada uma “intervenção” por ter atingido o limite de três por mês. Os interessados em contratar os serviços da Lacuna reúnem todos os objectos materiais que podem evocar a pessoa ou situação que pretendem esquecer – fotografias, desenhos, presentes, passagens dos seus diários, músicas, filmes, etc. -, entregam-nos aos cuidados dos técnicos, que nessa noite visitarão o cliente em casa, onde, devidamente ligado às máquinas de “apagamento”, dormirá um sono do qual acordará com uma mente sem mácula do sofrimento passado. Não é impunemente que se apagam as memórias, vê-lo-emos. E nos casos que o filme nos permite acompanhar verifica-se que as pessoas seguem percursos que as conduzem à repetição dos actos que deram origem às situações dolorosas apagadas anteriormente, numa espiral de repetição sem fim. Casais desavindos preferem esquecer-se às primeiras querelas. Lutos, fracassos, humilhações… uma passagem pela máquina que tudo apaga e virá a paz de espírito que o esquecimento traz. Talvez não haja ninguém que não tenha sentido alguma vez o desejo de esquecer certos momentos, e quanto do que fazemos se destina a evitar memórias dolorosas… Quantas ruas se evitam, quantos lugares, quantas melodias? Mas até que ponto estaríamos dispostos a ir nessa supressão das memórias dolorosas? Nesta fábula dos nossos dias que é “Eternal Sunshine…”, a memória, tornada descartável, deixa em seu lugar o vazio e a ausência de sentido. Com o apagamento das experiências de vida que terminaram mal desaparecem os fracassos e o sofrimento que eles geraram, mas também esse registo de unidade e de crescimento interior que dá sentido à vida. Fragmentados e perdidos, vagueiam os desmemoriados sem rumo, à luz do sol eterna de uma mente sem mácula.