elogio da música portátil

Isto de se calcorrear a cidade com os auscultadores nos ouvidos confere às vezes um inesperado sentido poético ao mundo. As árvores da rotunda da Boavista, para não ir mais longe, com a Sarah Vaughan a cantar baixinho ao nosso ouvido, ganham uma tonalidade suavemente dourada e quase melancólica. Lamenta-se a doce Sarah que as canções de amor não são para ela e que apenas tem encontrado nuvens cinzentas no seu caminho, e vemos por instantes o mesmo lamento no rosto desta rapariga de piercing no sobrolho e cabelo avermelhado, que tem os olhos húmidos e vai mordendo o lábio para segurar o pranto.

Quando se escuta Amelita Baltar, a que não tendo sido a primeira mulher de Piazzolla foi a última, os passos ritmados destes homens e mulheres que vão cruzando a passadeira transformam-se em movimentos cheios de graça de um tango pleno de paixão e de fúria, e as palavras que eles e elas proferem, e que a música não me permite ouvir, quem sabe não estarão nesse indecifrável lunfardo nascido nos bairros pobres de Buenos Aires? E saibam que os Rolling Stones bem podiam sentar-se ao lado do adolescente arreliado, que se encostou ao vidro da janela do metro e faz todo o percurso com os braços cruzados e o rosto fechado, e contar-lhe o que aprenderam, que não se pode ter tudo o que se quer, mas pode conseguir-se aquilo de que se precisa, haja tempo e sabedoria para tanto.