O corporativismo impune

[Marco Faria]

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Zaleucus_-_Louvre_-_D111125.jpg

Várias vezes defendi as acções de agentes da autoridade. Sobre a sentença do Tribunal de Guimarães ontem proferida, tenho de discordar não só do acórdão, mas também do silêncio concertado dos agentes da PSP em fase de julgamento.
“Mais vale absolver do que condenar nessa dúvida”. Os magistrados do Tribunal de Guimarães decidiram com base neste motivo absolver os agentes da PSP que espancaram um adepto do Boavista em 3 de Outubro de 2014. Não podendo apurar os verdadeiros autores – 3 dos 11 elementos, curiosamente do tamanho de uma equipa de futebol! – então deveriam ter condenado os 11 réus. Todos. Três dos agentes empurraram, agrediram com joelhadas, socos, pontapés, cotoveladas e bastonadas até a vítima perder os sentidos. A desproporcionalidade é clara e notória. Cinco longos anos depois, faltou o essencial: a punição.
A decisão do colectivo de juízes é contraditória, incompreensível e inaceitável, apesar de os magistrados darem como provadas as agressões físicas. No fundo, há crimes, há uma vítima, só se desconhecem quem foram os autores dos factos, os agressores.

Se pensam que o corporativismo é saudável, ele mancha o trabalho dos bons polícias. Não me venham com princípios jurídicos, porque o tribunal não conseguiu identificar os agressores? “In dubio, pro justitia”. E o bom nome da PSP, onde fica? Na lama, à porta das esquadras, dos estádios de futebol e dos tribunais.
O presidente da Associação Sindical dos Profissionais de Polícia (ASPP/PSP), também arguido neste caso, perdeu autoridade moral para representar o espírito de serviço público “inter pares”. Não tem legitimidade para falar publicamente de nada a partir de agora, mesmo com esta absolvição. Não basta ainda ser dirigente associativo, carece de ser um modelo. O único exemplo que deu foi encobrir os maus polícias, chame-se-lhes colegas ou camaradas. Estão todos sujos.
Não basta ser polícia e ostentar uma farda, é preciso ser homem. No teatro difícil de violência, da provocação gratuita e da chafurdice que acompanham o futebol, o arcaboiço psicológico dos agentes da autoridade é uma condição essencial. E só os mais preparados estão à altura de assegurar a ordem pública.
A sentença da primeira instância só merece um desfecho: a anulação pela Relação de Guimarães. É a única maneira de a justiça preservar a paz social, a credibilidade dos tribunais e, já agora, dar-nos alguma segurança para assistirmos a espectáculos desportivos. Ou será que devemos levar os nossos filhos aos estádios e corrermos o risco de ficarmos sem um olho e ainda se rirem na nossa cara?
Um dos problemas do Holocausto foi a absoluta indiferença avisada por Elie Wiesel, ele próprio sobrevivente desse tempo de náusea, vergonha e terror. Tanta gente sabia o que se passava nos campos de concentração, mas nada fizeram. Fingiram. E na hora de serem julgados, ainda tentaram ocultar e branquear as responsabilidades dos demais carniceiros nazis. Pode parecer um exagero, mas o comportamento de um agente que ajuda a esconder os crimes de um colega radica também nessa alienação e desprezo em relação à sociedade, à vida e à verdade. Valem mais o amor e dever corporativos do que a justiça. Como acontece com os crimes da violência doméstica, onde todos sabem, porém os vizinhos, o prédio e a comunidade assobiam para o lado. “Entre marido e mulher não se meta a colher”, mesmo que a vítima acabe assassinada com três facadas. Entre 11 agentes da autoridade não se meta ninguém, mesmo que um adepto perca 50% da capacidade visual. Grave é os tribunais actuarem na cegueira ao denegarem a primeiríssima e única função que lhes cumpre: administrar justiça em nome do povo. Não podemos ficar indiferentes a esta sentença iníqua.

Comments

  1. JgMenos says:

    Definido o delito, não cabe a polícia algum ignorá-lo.
    Todos haveriam de ser penalizados de algum modo.

    Mas também haveria a autoridade de ser respeitada…importa conhecer toda a história, talvez o espancado também devesse levar pena, que isto de levar porrada não iliba ninguém.

  2. Rui Naldinho says:

    Já não sei se a Justiça é cega ou se é caolha!

    • Rui Naldinho says:

      Presume-se que órgãos de soberania não protejam criminosos. Presume-se que instituições públicas não protejam incompetentes, dentro e fora de portas. Ao fazê-lo só fragilizam o Estado de Direito, ou se quiserem o próprio Estado Social.
      Já não falo das instituições privadas, regem-se por outros códigos, delas apenas se espera o retorno no investimento, e quanto maior for a opacidade; o segredo é a alma do negócio, melhor se safam.
      Já a Polícia, como corporação é um dos instrumentos do Estado Social, garantindo a nossa segurança. Casos destes não deveriam acontecer.
      Mas desengane-se que pensar que é só aqui que estas coisas acontecem. Militares, Médicos, Enfermeiros, Juizes, Professores, enfim, corporações com forte peso na sociedade, deviam elas próprias expurgar alguns tumores que por ali germinam em vez de os proteger. Na maior parte dos casos, os chefes e colegas, por comodismo, sacodem a água do capote.
      Quem sai prejudicado no final é o doente, o aluno ou o cidadão em geral. Tudo com a nossa complacência.

  3. Julio Rolo Santos says:

    Tal como estão as leis, os policias são sistematicamente agredidos, verbal e corporal , sem que pouco ou nada aconteça aos agressores. Assim, é difícil ser polícia nestas circunstâncias. Obviamente que os policias recentem-se desta falta de apoio do poder político e judiciário e passam ao ataque, por vezes desmesuradamente. O futebol é um bom exemplo para despoletar este tipo de situações e aqui a força ou a estupidez é aproveitada para medir forças.

    • Ana A. says:

      “…aqui a força ou a estupidez é aproveitada para medir forças.”

      Para bem de todos é bom que na admissão à profissão a estupidez seja muito bem filtrada e reduzida à sua menor expressão!

      • Julio Rolo Santos says:

        Como e quem faz essa filtragem na admissão á polícia e o que fazer com os criminosos que diariamente agridem os agentes? Os psicólogos? As hierarquias? É tão fácil opinar o difícil é encontrar soluções para não termos que nos reportar a estas situações.

    • Paulo Marques says:

      É quase como se isso fosse parte da profissão.
      Estou 100% de acordo com o presidente da ASPP sobre a falta de condições dos polícias, quer no equipamento, quer no salário, quer até no respeito dos superiores (ver entrevista no Perguntar Não Ofende), mas espera-se mais de um dos poderes do estado do que ser máfia legalizada, apesar de tudo.

  4. Pimba! says:

    Faz lembrar o outro caso em que foi provada a corrupc,äo, há corrompido… mas näo há corruptor!

    Por acaso (ou talvez näo) esse caso também mete bola.

  5. Miguel Martel says:

    Realmente há um acto de excessiva violência que fica impune…, mas é um entre muitos de sentido inverso. Especialmente, quando os agressores são ciganos, embora os negros estejam também a gozer desse privilégio. Em contrapartida, o que dizer do indulto presidencial, do MSoares, a terroristas das FP25Abril, que assassinaram mais de 12 pessoas, incluindo um bebe?

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