A máquina do tempo: Guilherme Tell e a grande oportunidade perdida

 

 Diz a tradição que foi a 18 de Novembro de 1307, faz hoje 602 anos, que se deu o episódio de Guilherme Tell, a história da flecha, da maçã e da cabeça de seu filho. Todos conhecem a lenda que inspirou poetas, escritores e o grande compositor  Rossini que criou uma ópera com o nome do herói suíço, cuja abertura é particularmente famosa. A história é assim: Guilherme Tell e o filho, ao passarem pela praça central de Altdorf não saudaram, como era obrigatório o símbolo do domínio dos Habsburgos, o chapéu de Gessler, o tirano que, em nome dos austríacos, governava o território. Presos, Tell  foi condenado a disparar com a besta uma frecha sobre uma maçã colocada em cima da cabeça do menino.

Situando-se a 50 passos, atada a criança a uma árvore e colocada a maçã sobre a sua cabeça, Tell disparou, acertando na maçã. Porém, vendo que Tell tinha uma segunda frecha, o governador perguntou-lhe para que a queria: «Para atravessar o teu coração, caso tivesse morto o meu filho!» A lenda de Guilherme Tell tem várias versões. Nas crónicas de Melchior Russ de Lucerna, por exemplo, do último quartel do século XV, Tell aparece como o principal herói da luta pela independência travada pelos primeiros cantões.  

A ciência histórica contradiz as lendas, pondo mesmo em causa a existência de Tell. Porém, no imaginário popular suíço, ele é uma figura com que os helvéticos se identificam – numa recente sondagem, verificou-se que 60% dos cidadãos da Confederação acreditam que ele existiu. Para o escritor argentino Ernesto Sábato, quando Tell acertou na maçã, perdeu-se uma grande oportunidade de ocorrer uma tragédia na Suíça…

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A Suíça é um país bonito. Visitei-o há uns anos na Primavera, por altura da Páscoa. Apanhei alguns daqueles fortes nevões sem os quais a Suíça tem tanta graça como o Algarve sem sol ou a Alemanha sem cerveja.  Com a minha mulher e outro casal amigo e o seu filho (o Gomes Marques, a Célia e o António Pedro), percorremos o país que, como sabemos é pequeno – uma área ligeiramente superior à soma do Alentejo com o Algarve – ao longo de um pouco mais de uma semana. Chegados de avião a Zurique, visitámos depois as demais cidades – Genebra, Lausana, Basileia, Montreux, Lucerna, Zermatt, os Alpes… (estive a ver as fotografias, mas não sei se o itinerário seguiu esta ordem). Quando atravessámos a fronteira e chegámos a França, após uma maravilhosa viagem sem incidentes, sentimos uma certa sensação de alívio. Porquê?

A Suíça é um país muito bonito, mas é um bocado monótono, os suíços são inteligentes e diligentes, fabricam relógios, chocolates, canivetes e tudo isso, mas são um pouco, como hei-de dizer … (ia a dizer chatos) previsíveis em demasia. Para nós, latinos, habituados a uma certa balbúrdia, fora e dentro das cabeças, toda aquela limpeza, método e arrumação são enervantes. Contou-nos uma imigrante portuguesa que quase foi expulsa por, no Natal, estar a partir nozes que lhe tinham chegado de Portugal. Os vizinhos acharam o ruído insuportável e chamaram a polícia que a intimou a cessar de imediato a operação. Senão…

Pese embora este irritante (para nós) feitio miudinho, não pode deixar de surpreender como, quase sem recursos naturais, num território pequeno e super-povoado com quase oito milhões de habitantes, consigam ter um dos níveis de vida mais elevados do mundo. Embora, num registo diferente, surpreenda também, como tão civilizados, só em 1971 tenha sido concedido o direito de voto às mulheres, sendo que, até então, a maioria das cidadãs entendia não dever votar.

Recusando-se a integrar a União Europeia (não sei se resistirão durante muito tempo), conservam a moeda, o fortíssimo franco suíço, mantendo a condição de principal praça financeira do mundo na gestão de fortunas, lugar que ocupam mercê de um blindado sigilo bancário que permite aos europeus ricos fugirem à apertada rede fiscal que vigora na União. E não só.

Um país impecavelmente limpo que mantém essa limpeza asséptica mercê da sujidade que reina em seu redor. Uma jangada, um paraíso fiscal, num oceano mafioso. Em todo o caso, o cerco a esta vergonha vai sendo apertado: em 2 de Abril deste ano, depois da reunião do G20 em Londres, a Suíça foi finalmente incluída pela OCDE na lista dos paraísos fiscais. O governo helvético comprometeu-se a dar mais informações sobre os depósitos nos seus bancos. O que irá prejudicar este negócio tão próspero que teve avultados lucros quando, após a segunda Guerra Mundial, tendo desaparecido no fumo dos fornos crematórios do tio Adolfo muitos dos depositantes judeus, os valores depositados foram incorporados no património dos bancos.

Depois foram os políticos corruptos, os barões do narcotráfico e outros activos empreendedores internacionais a usar os bancos suíços como máquinas de lavar para o seu dinheiro. Por isso, deixar de ser um porto seguro para os miseráveis que enriquecem com a miséria e com a morte, vai ser um duro golpe para um país tão limpo, tão certinho. Mas de uma coisa podemos estar certos: tudo se passará sem tragédia. Rodeada pelo oceano da tragédia dos outros, na jangada Suíça não acontecem tragédias.

Em «Heróis e Túmulos», o escritor argentino Ernesto Sábato tem uma frase lapidar sobre o tema: «os mitos nacionais» (…) «são fabricados intencionalmente para descrever a alma de um país, e assim me ocorreu naquela circunstância que a lenda de Guilherme Tell descrevia com fidelidade a alma suíça: quando o arqueiro acertou na maçã com a flecha, por certo no meio exacto da maçã, perdeu-se a única oportunidade histórica de uma grande tragédia nacional. Que se pode esperar de tal país? Uma raça de relojoeiros, no melhor dos casos.»

Por falar em relógios: de72 em 72 horas, há um suicídio na Suíça. É a principal causa de morte no país, que tem uma das mais elevadas taxas de suicídio do mundo.  Porque será?