Contos proibidos – Memórias de um PS desconhecido. «Bastava olhar para ele [Mário Soares] para ver que nada tinha que ver com o socialismo da classe operária»

(continuação daqui)

Desde o lançamento da ASP que os socialistas portugueses encontravam imensas dificuldades em ser reconhecidos em termos de igualdade pelos seus congéneres europeus e o acolhimento político e logístico aos dirigentes portugueses – com excepção da ocasional foto protocolar em reuniões internacionais – estava longe de ser solidário e, muito menos, caloroso. Enquanto exilado, o líder do movimento socialista português
nunca seria recebido oficialmente, nunca participaria em nenhuma conferência de imprensa conjunta, em nenhuma conferência de líderes ou reunião bilateral pública com nenhum dos dirigentes da Internacional Socialista. Não há registo de declarações conjuntas de Soares com nenhum dos «amigos» acima mencionados e não se conhece um único acto conjunto, nem sequer um simples almoço, que revele aquela intimidade.
À excepção de Mitterrand, jamais conseguiria encontrar nos escritos de Palme, Kreisky, Brandt ou Wilson, nem tão-pouco nas suas biografias, uma única referência ao líder português comprovativa daquela autoproclamada amizade. E estes são os exemplos da família socialista. Em contraste, por exemplo, Felipe González, apesar de pertencente a uma geração mais jovem, é frequentemente referenciado por todos eles. No seu livro de memórias, o ex-chanceler alemão e presidente da Internacional Socialista, Willy Brandt, diz mesmo que «com o jovem Felipe González [sentiu] uma forte ligação desde o princípio». A situação de desconsideração pelo nosso esforço, enquanto dirigentes políticos no exílio, era tal que Mário Soares chegaria a ter mesmo momentos de desespero com os seus «anfitriões» do Partido Socialista Francês que, apesar de estar na oposição e ser, na cena internacional, um partido relativamente insignificante, raramente o recebia e só em casos excepcionais se encontrava com o então secretário das relações internacionais, Robert Pontillon. E, apoio material, nem vê-lo! Por outro lado, como já se disse, para além da foto ou aperto de mão protocolares, os contactos do líder português faziam-se de uma posição humilde e algo humilhante com funcionários dos partidos da Internacional ou, como grande conquista, com os secretários das relações internacionais desses partidos. Estes exemplos de falta de solidariedade eram generalizados, mas para isso é evidente que contribuía o conhecimento dos partidos «estabelecidos» da exiguidade da nossa influência na sociedade portuguesa, que contrastava, no tamanho, com o radicalismo à francesa dos dirigentes da Acção Socialista.
Os socialistas europeus tinham a sensação de que o recém-nascido movimento socialista português era uma criação artificial pequeno-burguesa ou, como diria mais tarde o conhecido e radical ex-ministro britânico, Tony Benn, referindo-se ao líder do PS, «bastava olhar para ele para ver que nada tinha que ver com o socialismo da classe operária».
As dificuldades eram tais, que os poucos financiamentos teriam que ser
arrancados quase à força. Perante um pedido de ajuda para o núcleo da Acção Socialista que acabara de ser constituído em Londres, o primeiro núcleo devidamente organizado no exílio, o Partido Trabalhista respondia lamentar, mas não estar «em posição de poder contribuir para a manutenção duma sede. Contudo, se conseguirem obter um espaço talvez possamos contribuir com uma máquina de escrever, estantes, secretárias, etc., de que nós próprios já não necessitemos».
No mesmo ano, Bernt Carlsson, secretário internacional do partido irmão da Suécia escrevia a Mário Soares em Paris: «que a direcção [do PSD sueco] considerou o o seu pedido de ajuda financeira de 15 de Outubro, 1971. Foi decidido dar uma contribuição de 10000 coroas suecas»,tendo, após novo pedido de Mário Soares, no ano seguinte, o referido funcionário anunciado uma nova «contribuição de 10000 coroas suecas».
Mesmo assim esta fonte, que tendo em conta os valores cambiais da altura, e as contribuições dos outros partidos, era extremamente solidária, parece ter secado. Manuel Tito de Morais escrever-me-ia em Novembro de 1973, pedindo-me para «ir a Estocolmo falar ao Carlsson. Ficou de se encontrar [com ele] aqui em Roma mas não deu sinal de vida, depois de ter recusado a ajuda material que lhe pedíramos. Devias
vê-lo e falar também ao Schori, não para pedir nada mas para manter o contacto, falar nos nossos assuntos e veres se descobres a razão do afastamento que se verifica».
Estávamos assim bem longe do tempo em que bastava pegar no telefone e falar com o Brandt, o Palme ou o Kresiky. E, se as quantias que o PSD sueco enviava para Paris a Mário Soares eram generosas em relação ao tamanho da ASP e das nossas expectativas, elas eram, na realidade, insignificantes se comparadas com o financiamentosueco a outras organizações consideradas importantes. A título de comparação, bastaria dizer que na altura o apoio financeiro da Suécia à luta da FRELIMO era 7500 vezes superior ao enviado a Mário Soares, para Paris. Após divulgação pelo The Times de Londres, a 10 de Julho de 1973, do massacre de Wiriyamu relatado pelo padre católico Adrian Hastings, o ministro sueco dos Negócios Estrangeiros do governo de Olof Palme, Krister Wickman, anunciaria que o aumento da ajuda sueca à FRELIMO seria aumentado de 3 para 5 milhões de coroas. O malogrado ex-primeiro-ministro da Suécia tinha, aos 22 anos e enquanto secretário da União de Estudantes Suecos, promovido uma colecta a favor de bolsas de estudos para estudantes africanos. Um dos primeiros a serem beneficiados, já no ano de 1949, fora exactamente o fundador da FRELIMO, Eduardo Mondlane, de quem Palme viria a tomar-se grande amigo.

Contos proibidos: Memórias de um PS desconhecido – Mário Soares e Samora Machel

(continuação daqui)

Em circunstâncias que descreverei noutros capítulos, eu teria a grande honra de conhecer em 1983 o então presidente de Moçambique, Samora Machel. Era injustamente conhecido em Portugal pelas «anedotas» racistas que o transformavam sempre
no «intérprete vítima», ignorando totalmente os seus grandes dotes humanos. Acontece que Samora Machel gostava de contar ele mesmo «histórias» sobre os portugueses e às vezes, com grande sentido de Jair play, transformava-se a si próprio na «vítima»da anedota. Uma noite, numa conversa que teve comigo em Maputo, satisfaria a minha curiosidade sobre pormenores da transição dizendo-me, meio a sério meio a brincar, que, quando assumiu o poder pela primeira vez, uma das suas primeiras medidas foi só sair à rua com pelo menos o dobro dos motards da escolta policial que o antigo governador colonial utilizava. Para a população – diria perante o meu ar de divertido espanto – era um sinal de que o novo presidente moçambicano era duas vezes mais importante que o ex-governador colonial! Ora vem esta maravilhosa história a propósito da imagem que, no nosso país, se «vendeu» com êxito à empobrecida população, farta do seu longo isolamento internacional. A ideia, a partir do momento que se sabe que os portugueses querem seguir um destino comum ao dos seuscongéneres europeus, de que quem tinha amigos ricos na Europa era rei! Chegar-
-se-iam mesmo a descrever relações internacionais sem o menor sentido de modéstia e das proporções, tendo o líder socialista afrnnado até ser «evidentemente… amigo pessoal do Schmidt, do Willy Brandt, do Callagham, do Olof Palme, do Yoergensen,
do Kreisky, do Mitterrand, etc. Posso pegar em qualquer momento no telefone e falar com eles». Mesmo que fosse verdade em 1979 e que, com excepção de Mitterrand, Mário Soares conseguisse falar com qualquer desses «amigos pessoais» numa linguagem comum,
esta afirmação visava o mesmo objectivo dos motards de Samora Machel.
A realidade era contudo muito diferente, sobretudo, antes do 25 de Abril de 1974!

Contos Proibidos: Memórias de um PS desconhecido. Mário Soares – Da colagem ao PCP ao exílio dourado

(continuação daqui)

Na realidade, a incapacidade dos socialistas e dos democratas portugueses para se organizarem e manterem relações com os seus congéneres europeus, após o desalento em que caíram com as divisões da I República, permitiram a quase «exclusiva» implantação do Partido Comunista e inviabilizaram o estabelecimento de um regime democrático em Portugal, em 1945. E, não obstante a grande desilusão da chamada «oposição democrática» portuguesa perante a opção dos vencedores da Guerra, nem a vitória de Clement Attleel e dos trabalhistas britânicos, em 1945, valeu aos socialistas portugueses. É que, se os havia, ninguém no resto da Europa sabia onde estavam.
Mesmo assim, em 1973, a consciência do seu passado de relações subalternas em relação aos comunistas e a evidência dos maus resultados a que esse relacionamento conduzira Portugal anteriormente não seriam motivos suficientes para demover a direcção do ainda jovem movimento socialista de um acordo com o Partido Comunista.
Mário Soares, desiludido com as promessas da «primavera marcelista» e com o resultado da CEUD nas eleições de 1969, iniciaria uma longa viagem à volta do Mundo, acabando por se exilar em França, em 1970, após garantida a sua sobrevivência económica enquanto «consultor» do grupo económico de Manuel Bullosa (2).
Neste país acabaria por ser profundamente influenciado pela plataforma unitária que Mitterrand viria a estabelecer com Marchais, passando então a ser o principal defensor de um acordo entre os socialistas portugueses e o Partido Comunista, segundo o
modelo francês e a que chamaria «contrato político». E, sem grandes consultas ao seu pequeno grupo político, este contrato transformar-se-ia num «pacto de governo», após reunião «clandestina» dos dois partidos que teve lugar em Paris, em Setembro desse ano. Do qual, por sua vez, só não resultou um programa de acção comum, porque o PC desconfiava das expectativas que os fundadores da ASP tinham manifestado em relação à chamada «primavera marcelista» e estava convencido de que os socialistas
não tinham o menor peso no que eles consideravam ser o «conjunto do movimento democrático» português.
De facto, o único trunfo dos socialistas era o terem sido admitidos, um ano antes, na Internacional Socialista. Organização que a União Soviética pretendia penetrar, apesar das «críticas» às suas características «social-democratas»!
Mas o PCP, embora seguindo as superiores directivas do PCUS3em matéria de política externa, estava desfasado da realidade nacional e preferiria desenvolver a sua relação de domínio sobre o MDP/CDE, em detrimento do potencial e das «virtualidades» da aliança desejada por Soares. Mas, para o líder socialista, sob fogo cruzado da propaganda do regime e da extrema-esquerda, o acordo com o PC seria uma credencial preciosa que dissiparia algumas dúvidas no seio da Internacional Socialista. Dúvidas semelhantes às que existiam em relação a François Mitterrand. O acordo de Soares com o PC jamais seria, contudo, um acordo honroso para os socialistas, dada a evidente subalternidade em que se colocavam. Tão-pouco vinha ao encontro da orientação seguida pela esmagadora maioria dos partidos «irmãos» da Europa. Mas, apesar disso, Soares desenvolveria todos os esforços para o dar a conhecer junto dos parceiros da IS, pedindo-me mesmo que o traduzisse para sueco, o divulgasse e o mostrasse ao Partido Social-Democrata Sueco.
Em Lisboa, também Mário Soares tinha, desde o início da década de 60, estabelecido contactos com um funcionário da embaixada da Dinamarca, simpatizante do Partido Social-DemocrataDinamarquês, Axel Buus I e com um funcionário da embaixada dos
Estados Unidos, de nome Diego Ascensio. Um outro contacto internacional do início dos anos 60, que provaria vir a ter grande utilidade para a carreira de Mário Soares, foi a amizade que estabeleceu com Marvin Howe, jovem correspondente itinerante do
NewYork Times em Lisboa e na capital marroquina, Rabat. Depois de algumas menções na imprensa internacional, Marvin Howe conseguiria junto de um grupo de «liberais» norte-americanos, seus amigos, que se reclamavam das tradições de Norman Thomas,
juntar alguns correspondentes estrangeiros no Overseas Press Club de Nova Iorque com quem Soares comentaria os seus pontos de vista sobre a política colonial de Marcello Caetano. E, graças à assustadora mediocridade e provincianismo dos governantes de então, Mário Soares, ainda em Nova Iorque, seria aconselhado a não regressar a Portugal.
O governo português conhecia de antemão as suas posições sobre a guerra colonial, mas desconhecia por completo o funcionamento da comunicação social internacional, confundindo telegramas das agências noticiosas com campanhas antiportuguesas na imprensa internacional. Marcello Caetano não se conteve e, deixando cair a última máscara de tolerância e de abertura que evidenciara quando tomara posse pouco mais de um ano antes, mandou instaurar um processo-crime ao dirigente socialista. A verdade é que, apesar do empenho de Marvin Howe, os telegramas dos correspondentes que participaram na dita «conferência de imprensa» do Overseas Press Club pouco eco teriam então na imprensa internacional. Segundo o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar, Franco Nogueira, revelaria ao historiador José Freire Antunes, Marvin Howe «não era ainda uma correspondente, mas uma principiante».
Tal não corresponde, contudo, à verdade. Tendo em conta que sobre ela já na altura recaíam suspeitas «de ser uma conexão da CIA» 4 e conhecidas as ligações de grandes órgãos de comunicação social americanos com os serviços secretos como viria a ser
confirmado pela Comissão de Inquérito a que presidiu o congressista norte-americano Edward Boland, então, não só ela não seria uma principiante, como seria mesmo uma grande profissional e foi por obra e graça dos seus esforços que Mário Soares começou
a ser conhecido da imprensa internacional. Foi, aliás, através «dos seus textos públicos e das suas recomendações à margem do jornalismo, que a CIA – pouco atenta à oposição portuguesa durante os anos de Johnson – aprendeu a soletrar o nome de Mário Soares». De qualquer modo, foi a partir das iniciativas da correspondente do New York Times e, em particular, de uma carta que ela enviaria ao «Special Assistant to the President», Bill Moyers3, em Outubro de 1965, que Mário Soares iniciaria uma série de contactos com um dos membros da delegação da CIA em Lisboa. Mário Soares refere-se a esses contactos no seu livro Portugal Amordaçado como contactos com «um secretário da embaixada americana em Lisboa» mas tudo leva a crer que já se trataria de Diego Ascencio, que o então chefe de informações da PIDE Álvaro Pereira de Carvalho, identificaria como sendo «um dos membros da pequena estação da CIA em Lisboa». Ascencio seria uma das relações mais precisosas de então de Soares e ainda hoje continuam a manter relações de amizade.
Não admira, portanto, que ainda hoje muitas pessoas continuem a ter uma imagem distorcida do que uma certa imprensa difundiria em tons dourados, após 1974, sobre os chamados contactos internacionais dos socialistas portugueses e do Partido Socialista.
Com as incessantes romarias políticas do pós 25 de Abril e a constante exibição de grandes figuras da cena política europeia e norte-americana, como Harold Wilson, James Callaghan, Olof Palme, Willy Brandt, Bruno Kreisky e, entre muitos mais,
Edward Kennedy, ficar-se-ia com a ideia de que estes não só protegiam e apoiavam a Acção Socialista Portuguesa com mundos e fundos como recebiam, de braços abertos, os seus dirigentes no exílio ou na clandestinidade. Nada poderia ser mais diferente, se
bem que esta «distorção da história» tivesse então algo de premeditado.

(2) Manuel Bullosa
fo
i um dos principais empresários portugueses de antes do 25 de Abril. Era dono do Crédito Predial Português, Sacar e Banco Franco-Português, de Paris.

Contos Proibidos: Memórias de um PS desconhecido

(continuação daqui)

«Corriam rumores entre os exilados de que Mário Soares só não aceitara o convite do director de campanha de Marcello Caetano, Guilherme de Mello e Castro, para integrar as listas da ANP, em 1969, porque pretendia a garantia de um lugar no governo.
O fundador da ASP e primeiro líder do movimento, Mário Soares, reconhece para ele próprio a influência do socialismo humanista e cooperativista de António Sérgio e até o pensamento estalinista do seu antigo professor, Álvaro Cunhal. A verdade é que, contrariamente ao que acontecia pelo resto da Europa, e até na vizinha Espanha com o Partido Socialista Operário fundado por Pablo Iglésias, em Portugal, a Acção Socialista, primeiro, e o Partido Socialista, a partir de 1973, para além dos textos de Mário Soares que iriam sendo «oficializados», nada têm que ver com os grandes movimentos socialistas da classe operária do fim do século dezanove.
A precursora do Partido Socialista não tinha qualquer passado histórico. Nascera na década de 60 um pouco como quem regista uma patente por iniciativa de um grupo de conspiradores de «operações»,a sua maioria ligados à Maçonaria, e de alguns teóricos influenciados pelo PCP, como foi o caso de Salgado Zenha e do próprio Vitorino Magalhães Godinho.
A evolução teórica do movimento, mais de três décadas após a sua constituição, é assim essencialmente caracterizada mais por razões empíricas de conveniência dos seus operacionais do que pelasteses dos seus «ideólogos» ou pelos princípios doutrinários que emanam do socialismo democrático. Esta caracterização, que viria a ficar célebre quando o líder da oposição, Francisco Sá Carneiro, acusou o então primeiro-ministro Mário Soares de «metero socialismo na gaveta» com a finalidade de se manter no poder através de uma coligação com o partido democrata-cristão, CDS, verifica-se frequentemente na prática seguida desde 1964. Seria mesmo
motivo de algum desdém por parte dos sociais-democratas norte-europeus que consideravam verdadeiramente ridícula a constante necessidade de demarcação dos socialistas portugueses em relação à social-democracia, a cuja familia queriam pertencer
embora afirmassem ser socialistas democratas e nãosociais-democratas. Era um maneirismo influenciado por François Mitterrand,que a Internacional Socialista considerava uma expressão de retórica e pura hipocrisia, com o objectivo de parecerem mais progessistas aos olhos do mundo.
Era aliás um sintoma típico do Sul da Europa, que um proeminente político norte-americano, anos mais tarde, comentaria com ironia, em termos semelhantes aos de Sá Carneiro.
Mas não obstante a «subtil» distinção e a demarcação progressista dos seusprincipais dirigentes, a verdade é que a adesão dos socialistas portugueses à Internacional Socialista representa o ponto mais alto do movimento no período que antecedeu o 25
de Abril de 1974. Na história do PS, a suafiliação internacional sobressai destacadamente da manifesta «probreza» do seu passado. O PS, «sobrevivente apagado dos anos 30, que não resistiu,como organização autónoma, à repressão e clandestinidade, que
no final da Segunda Grande Guerra era constituído apenas por um pequenogrupo de abencerragens, sem qualquer influência real no País».

Contos Proibidos: Memórias de um PS Desconhecido

(continuação daqui)

«Durante mais de uma década, até à entrada de Portugal como membro de pleno direito na Comunidade Europeia, em 1986, o nosso pequeno e subdesenvolvido país, até então quase «esquecido» do seu contexto europeu, mobilizaria de forma inédita todas as atenções mundiais com a sua «Revolução dos Cravos» e teria reflexos profundos na Europa e no Mundo. A «nossa» revolução seria quase instantaneamente «adoptada» por praticamente todas as forças democráticas internacionais, tendo-se democratas cristãos, liberais, socialistas e até comunistas em todas as suas imagináveis versões, em determinados momentos e por diferentes motivos, considerado próximos do nosso 25 de Abril. Para o Partido Socialista, que protagonizaria de certo modo os aspectos positivos da Revolução e que imprimiria a sua marca ao sistema político constitucional vigente, esta seria também a sua década dourada.

Em Abril de 1974, a social-democracia europeia entra na sua fase de apogeu. Partidos filiados na Internacional Socialista, a que o PS português também pertence, estão então no governo na Alemanha Federal, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Grã-Bretanha, Holanda, Israel, Luxemburgo, Noruega e Suécia. Na Escandinávia, os movimentos sociais-democratas de inspiração sindical começam a desprender-se do «conservadorismo» em que a sua dependência «operária» os lançara e a ansiar por um maior protagonismo internacional. Na Grã-Bretanha, a onda de revolução social da segunda metade dos anos 60 contra o chamado establishment reabre as portas ao Partido Trabalhista liderado por Harold Wilson, que se mostra impotente para travar a vaga que transformaria aquele partido, tradicionalmente moderado, num dos mais radicais da Internacional Socialista. Na Alemanha, a democracia «controlada» do pós-guerra deu lugar a um «novo» Partido Social-Democrata com forte liderança de Willy Brandt e Helmut Schrnidt os quais, apesar das nuances entre si, tinham o objectivo comum de transformar novamente a Alemanha num país unificado e no motor da Europa. Na Áustria, com Bruno Kreisky, na Holanda, com Joop den Uyl, na Bélgica e até na Itália, graças à ameaça do P.C. de Enrico Berlinguer, emergem igualmente partidos sociais-democratas dispostos a dar nova cara ao socialismo.

Socialismo até então caracterizado essencialmente pelo seu eurocentrismo. Nos Estados Unidos também sopram ventos de mudança e, quando o 25 de Abril acontece em Portugal, já a administração republicana de Richard Nixon está ferida de morte com o caso «Watergate». Quando James Carter e Walter Mondale lançam a sua plataforma eleitoral de cooperação internacional e de defesa dos Direitos Humanos, em 1976, Willy Brandt prepara-se para ser eleito presidente da Internacional Socialista, com base num programa de actividades não muito diferente dos valores proclamados pelos democratas americanos e com a firme intenção de pôr fim ao eurocentrismo, dando início a uma nova fase de cooperação internacional entre socialistas democráticos, que alcançasse todos os continentes.

A Revolução Portuguesa tomara-se um marco essencial para a compreensão dos grandes acontecimentos políticos mundiais da segunda metade do século XX, se bem que os políticos portugueses, que pouco tinham feito para que o 25 de Abril acontecesse, também não a soubessem promover, nem conseguissem dela tirar os «louros» que, por direito próprio, Portugal merecia. A transformação pacífica de Portugal num país livre e democrático foi um acontecimento não só inédito como exemplar, que viria a contribuir de forma absolutamente decisiva para a falência de inúmeros regimes totalitários em África, na América Latina e no próprio Leste Europeu e para um desanuviamento da tensão nas relações internacionais.

A descolonização total do Continente Africano e os processos de democratização na Península Ibérica e na América Latina seriam o primeiro resultado da Revolução de Abril. O fim do apartheid e das ditaduras comunistas no Leste Europeu, pela via do diálogo e do pluripartidarismo, seriam também consequência da vitória das forças democráticas, primeiro em Portugal, depois, como reflexo dessa vitória, encontrariam força suficiente no seio da Internacional Socialista e no seio da NATO para rejeitar soluções de submissão unilateral nos chamados diálogos Leste Oeste e Norte Sul. Na base da força moral das forças democráticas, perante os graves conflitos entre o Leste e o Oeste e na escolha da via para a libertação dos Povos, nos anos 80, estaria sempre presente o exemplo português a que André Malraux chamaria a primeira vitória dos mencheviques sobre os bolcheviques. Bastaria referir, a este propósito, a situação de ruptura a que quase se chegou no seio da NATO por causa do regime sandinista na Nicarágua, sobre as propostas conducentes a um processo de desarmamento unilateral na Europa Ocidental e sobre um eventual apoio europeu a formas de luta armada a conduzir por países da Linha da Frente na África Austral, como forma de pôr fim ao regime do apartheid na África do Sul. Seria o exemplo da moderação da vitória dos mencheviques em Portugal que, na maior parte dos casos, mesmo quarido a revolução portuguesa já parecia esquecida, cimentaria as decisões de bom senso que acabariam por prevalecer e moderaria os ímpetos revanchistas dos republicanos norte-americanos e os ataques de pacifismo serôdio de alguns socialistas europeus. Portugal esteve no epicentro de uma grande ameaça à paz tendo a solidariedade internacional, que nos faltou durante tantos anos, finalmente funcionado. Entre as várias opções que se colocariam aos «capitães de Abril» e as várias receitas preconizadas para Portugal prevaleceria o bom senso. Mas os partidos políticos e seus principais dirigentes rapidamente desperdiçariam este enorme património, em lutas intestinas e com vaidades provincianas. Hoje, visto de fora para dentro, Portugal regressou ao seu estatuto de país insignificante e receptor. Não foram conseguidos os grandes objectivos da Revolução de Abril e o País encontra-se entre a Europa e a mediocridade. Parece que o povo português não consegue libertar-se do fatalismo da I República. Este meu livro de memórias, assim o espero, é também uma contribuição contra esse fatalismo.

O chamado caso do «fax de Macau» ou caso «Emaudio» dar-me-ia o último argumento de peso para escrever este livro. A propósito de um conflito, em nada diferente dos conflitos que devassam o interior dos partidos políticos portugueses e que se prendem com situações de poder; a propósito de um financiamento político relativamente «insignificante» e em nada, a não ser no montante, diferente dos que têm sido feitos ao longo dos últimos vinte anos a partidos políticos e organizações afins, confundiu-se a árvore com a floresta e iniciou-se a investigação à corrupção em Portugal de tal forma que, ao contrário do que tem acontecido noutros países europeus, se inviabilizaria o conhecimento da verdade e, como tal, o combate à corrupção. Em vez de se optar por um esclarecimento idóneo e completo, a que os Portugueses têm direito, sobre o estado da Nação em matéria de tráfico de influências e de corrupção, cortando o mal pela raiz ou, caso se verificasse que a verdade poderia ser fatal, a Assembleia da República em acto público entendesse fazer um acto de contrição para bem da democracia, criando moratórias e regras novas, o Ministério Público parece ter assumido a responsabilidade de definir o interesse nacional. Produzindo uma acusação sem provas numa total inversão de valores e, mesmo admitindo a convicção do investigador em relação a um crime que não existiu, ignorando a máxima de Séneca: «quem, podendo, não manda que o delito se não faça, manda que se faça».

Não há Democracia sem a
pa
rticipação dos cidadãos na vida do seu país. Escolheu- se definir, em Portugal, que o enfâse dessa participação se faça através de partidos políticos. Mas faltam ainda definir regras estritas sobre a democracia interna nos partidos que os impossibilite de se transformarem, como tem vindo a acontecer em Portugal, em aparelhos burocráticos fechados que impedem essa mesma participação.

E para além da ausência de regras que permitam, pela via individual, o acesso do cidadão à actividade política, não existem regras idóneas de financiamento dos partidos, nem de transparência para os políticos.Um pouco à semelhança dos «pilares morais» do regime, a Maçonaria e a Opus Dei, tudo se decide às escondidas, como se o direito dos cidadãos à informação completa e rigorosa de como são financiadas as suas instituições e dos rendimentos dos seus govemantes e dos seus magistrados fosse algo suspeito, algo subversivo.

Liberdade, Justiça e Transparência são sinónimos de Democracia. E sem esses ingredientes essenciais o regime português não passará de uma democracia com pés de barro. Acontecerá então, para mal de todos nós, a conversão do já em si negativo «triunfo da política» no temível «estado dos juízes»!»

Contos proibidos: Memórias de um PS Desconhecido

(continuação daqui)

«Hoje, para repor a verdade, decidi-me a escrever o livro. É um livro de memórias em redor do Partido Socialista, duma perspectiva das suas relações internacionais, que eu dirigiria durante mais de uma década. Não é, contudo, nem poderia ser, a história do Partido Socialista mas, essencialmente, uma contribuição para uma melhor compreensão de como foi forjado aquele que seria a espinha dorsal do regime democrático português actual.

O PS acabaria por ser, acidentalmente, aquele que mais responsabilidades teria na construção das actuais estruturas económicas, sociais e políticas do País. Opôs-se à opressão salazarista e sairia desiludido da chamada «primavera marcelista». Acabaria por resistir à aventura comunista e, depois, à tentação militarista, acabando por «impor» o seu modelo de sociedade, a partir de 1976. Nesse percurso e nos momentos decisivos, teria sempre o apoio internacional dos Estados Unidos e da Europa. Daí que a perspectiva internacional, em redor da qual têm girado o país e os principais partidos políticos, seja uma peça essencial para a análise dos actuais fenómenos da nossa sociedade.

Sem esses apoios, que para o PS estariam como o oxigénio está para a vida, provavelmente o regime democrático teria sucumbido. Do mesmo modo que, em 1945, a sua ausência viabilizaria a continuação de Salazar. Mas, por outro lado, se sem eles tudo estaria em jogo, também a relação de dependência criada e a institucionalização do tráfico de influências iriam provocar algumas distorções e vícios que o País hoje sente.

Tentar explicar esses fenómenos de um passado recente, para compreender o presente, é um dos objectivos deste livro. Mas, como não poderia deixar de ser, escrever sobre o PS durante este período sem falar dos seus principais protagonistas tomaria impossível alcançar essa meta. Entre eles destacam-se duas personalidades distintas e a relação de «amor e ódio» que, em grande parte, determinaria o actual PS: Mário Soares e Francisco Salgado lenha. O primeiro deixaria marcas profundas que continuarão a caracterizar o PS por muito tempo. De Salgado lenha este partido herdaria a «consciência moral» que ainda lhe resta. Mário Soares seria eleito Presidente da República e Salgado lenha abandonaria o partido, incompatibilizado com o seu «velho» amigo.

Durante algum tempo, o PS iria ser um barco à deriva. Recuperaria eleitoralmente, contudo, com o seu actual líder, António Guterres. Mas, curiosamente, essa recuperação só aconteceria quando este fiel discípulo de lenha se converteu ao «soarismo». Por isso mesmo, esta interessante simbiose das personalidades daqueles dois principais personagens será agora examinada à lupa no novo PS, para ver se ele segue o caminho da «consciência moral» do seu velho protector, ou o caminho do «absolutismo monárquico» e das facilidades do seu favorito ex-inimigo.

Para já, é evidente que o actual secretário-geral do PS, já em 1976 responsável com Edmundo Pedra, Soares Louro e Santos Ferreira I pela campanha eleitoral do PS, conhece bem as dependências internacionais do seu partido e até, à semelhança do seu antecessor, «trata-se por tu com pelo menos seis primeiros-ministros europeus» 1. Vamos ver para crer, como diz o ditado, mas, pelos primeiros indícios, temo que, do mesmo modo que Soares meteria o socialismo na gaveta, Guterres venha a meter a «consciência moral» do PS no congelador. O que é um mau sinal para a democracia. Que não terá futuro se o passado não estiver esclarecido e o futuro continuar a depender de bodes expiatórios.

O meu livro, assim o espero, ajudará a compreender como o triunfo de alguns se faria à custa do sacrifício dê outros. O «estado dos juízes» está «atento» ao passado dos actuais políticos e não hesitará, no momento oportuno, em colaborar para a sua decomposição.

Eu entrei para a política quase por acaso. Aderi nos anos 60 à minúscula Acção Socialista Portuguesa por acreditar que, pela via do socialismo democrático e através de um sistema pluripartidário, Portugal viria a ser um país igual ou melhor que aquele onde vivia exilado – a Suécia – e que era então considerado, acertadamente, a sociedade mais justa e mais evoluída do planeta. Não o socialismo utópico, igualitário, de partido único que transforma os cidadãos em funcionários do estado. O socialismo onde os partidos se combatem no campo das ideias e onde os interesses e bem-estar dos cidadãos estão sempre em primeiro lugar. Onde os partidos políticos são a espinha dorsal do sistema e os instrumentos para a sua modificação democrática e não o instrumento de promoção pessoal dos seus dirigentes. Mas, infelizmente, e daí a outra razão de ser ser deste meu livro, Portugal parece estar a perder essa importante batalha da democracia.

Isso atestam o crescente branqueamento da História e falta de transparência das instituições. A Europa, berço da amálgama de culturas e conflitos que deram origem ao que é hoje vulgarmente apelidado de «civilização ocidental», nunca produziu um modelo perfeito de democracia que garanta aos seus cidadãos a igualdade de acesso à educação, ao trabalho, à saúde e à justiça. Entretanto, alguns países, sobretudo a norte, conseguiram ao longo dos anos conquistas importantes naquelas áreas, com base numa considerável evolução do conceito de respeito pelos direitos humanos, dos direitos dos animais e da natureza. A vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, a criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte, o lançamento dos alicerces da União Europeia não viabilizariam, contudo, o acesso dos países do Sul ao fenómeno de desenvolvimento dos seus vizinhos mais a norte e, até meados dos anos 70, a Europa viveu num clima de completa desunião. Entre democracias mais ou menos formais no Norte e Centro, ditaduras medíocres e subservientes de «inspiração cristã» na Península Ibérica, uma ditadura militar com reminiscências pan-arábicas na Grécia e uma imensidão de regimes comunistas totalitários e despóticos, proclamados pela via revolucionária em nome da classe operária, a Leste.

O início da luta dos Movimentos de Libertação contra o colonialismo português na Guiné, em Moçambique e em Angola, empurrados pela miopia e desinteresse ocidental para os braços da União Soviética, dariam lugar ao chamado «Movimento dos Capitães» que a 25 de Abril derrubaria, para surpresa de todos, dentro e fora de Portugal, a ditadura iniciada com o Estado Novo, em 1933, por António de Oliveira Salazar.

Este levantamento pacífico e sem objectivos políticos claros, provocado quer por razões de natureza sindical, quer pela derrota psicológica dos militares portugueses nas guerras coloniais, viria a influenciar a evolução política mundial deste fim de século.

Contos proibidos: Memórias de um PS Desconhecido

«Para além da ausência de regras que permitam, pela via individual, o acesso do cidadão à actividade política, não existem regras idóneas de financiamento dos partidos nem de transparência para os políticos. Um pouco à semelhança dos «pilares morais» do regime, a Maçonaria e a Opus Dei, tudo se decide às escondidas, como se o direito dos cidadãos à informação completa e rigorosa de como são financiadas as suas instituições e dos rendimentos dos seus governantes e dos seus magistrados se tratasse de algo grave, de algo subversivo.» (Rui Mateus)
O José Freitas referiu-se aqui aos «Contos Proibidos: Memórias de um PS Desconhecido», livro de Rui Mateus que abordava, em 1996, as ligações perigosas de Mário Soares e o caso Emaudio. O livro, que vendeu 30 mil exemplares no dia em que saiu a público, esgotou e não mais foi publicado. O autor encontra-se em paradeiro incerto. Joaquim Vieira abordou as principais acusações da obra na «Grande Reportagem» e foi despedido.
Num «post» anterior, no Aventar e no «5 Dias», já abordei algumas dessas acusações. A 30 de Janeiro de 2008, interpelei a D. Quixote acerca da não-reedição do livro. Obtive a seguinte resposta:
«Exmo Senhor
Vimos pelo meio informar de que o livro “Contos Proibidos” se encontra esgotado e não temos de momento previsão de reedição.
Grata pela atenção dispensada.
Com os melhores cumprimentos.
Anabela Oliveira»

Embuído do seu dever de levar a cabo uma política editorial de serviço público, o Aventar passa a publicar, a partir de hoje, alguns excertos da obra maldita de Rui Mateus, os «Contos Proibidos: Memórias de um PS Desconhecido». Para que as suas acusações, hoje que temos um primeiro-ministro suspeito de corrupção passiva, não caiam no esquecimento e para que, um dia, se venha finalmente a saber a verdade.

via Ferrão

«Há anos atrás, conheci em Washington um jovem economista de reconhecido talento que fazia parte da equipa do presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan. Naquela época, o chamado fenómeno dos yuppies atravessava a sua fase dourada e David Stockman,com trinta e quatro anos de idade, era já apontado como um dos jovens políticos mais promissores do seu país. Com apenas vinte e oito anos, tinha sido pela primeira vez eleito congressista pelo estado de Michigan. O presidente nomeara-o director de «Management and Budget», o equivalente a ministro do Planeamento. Tinha o futuro à sua frente. Quatro anos depois, desiludido com a hipocrisia e o tráfico de influências que caracterizavam a vida política,a todos surpreenderia abandonando-a para escrever O Triunfo da Política.

É um livro surpreendente, que revela a falta de transparência da vida político-partidária e acusa o parasitismo daqueles que passam a vida a apregoar que estão na política por patriotismo e com sacrifício pessoal, pois poderiam estar muito melhor se se tivessem dedicado a actividades do sector privado – mesmo quando se sabe que, antes de entrarem na política, não tinham obra nem dinheiro. Num país em que as autoridades, os media e o público exercem um controlo rigoroso sobre o rendimento e financiamento dos políticos e sobre as suas actividades políticas e privadas, como é o caso dos Estados Unidos, que se regem por códigos de transparência acima de qualquer suspeita, David Stockman revelou a subtileza de meios que, mesmo assim, permitem o compadrio e o tráfico de influências no dia a dia dapolítica americana.

Em Portugal, neste pequeno país periférico, diminuído pela indigência e obscurecido pela opacidade, ensaia-se um sistema político-partidário moldado pelo Partido Socialista, onde só duas décadas após o restabelecimento da democracia se começa a discutir o tráfico de influências, a transparência e, enfim, o cidadão. Discussão envolvida em tanta hipocrisia e por métodos tão falaciosos que poderemos considerar que o nosso país, neste capítulo, se encontra num espaço cultural de transição entre o fascismo e um «estado de juízes», que não vislumbra um regime de verdadeiro controlo e legitimação democrática das instituições.

O «triunfo da política» e dos seus principais protagonistas, exactamente pelo modo como foi construído o regime após o 25 de Abril, começa a revelar perigosos sintomas de erosão da credibilidade das instituições, evidenciados pela crescente descrença popular. A democracia portuguesa, no actual contexto ocidental, embora irreversível na sua aparência formal, resvala perigosamente para «um corpo de funcionários sem legitimação democrática directa ou indirecta, como é, entre nós, o corpo de magistrados», que é dominado «por certas correntes que professam uma concepção militante, radical e fundamentalista da magistratura, a qual, geralmente aliada ao protagonismo político de alguns, tem subjacente uma cultura de intervenção, quando não de contrapoder e confronto com os órgãos de soberania político-representativos» . À semelhança do que acontece em Itália, berço do pensamento e acção fascistas que assolariam a Europa nos anos 30, também hoje é legítimo perguntar se o «governo dos juízes» que tem vindo a devastar aquele país, não estará a ser aproveitado para fins políticos também em Portugal, onde o protagonismo de alguns juízes, recentemente convertidos à democracia, tem feito impunemente os seus progressos perante uma cada vez mais amedrontada «classe política».

Não me tendo ocorrido escrever um livro antes, daria oportunidade, em 1990, a um semanário lisboeta que prometia desvendar mistérios através de um respeitável jornalismo de investigação, de se ocupar da difícil e ingrata tarefa de «investigar» o estado da Nação em matéria de compadrio e tráfico de influências. Lamentavelmente, o resultado não passaria de uma pusilâmine caça às bruxas e da reprodução de reles «fugas» de indisfarçável apologia fascista, bem inseri das numa estratégia, que, a vencer, conduzirá, inevitavelmente, ao «estado dos juízes». Tratou-se do chamado «fax de Macau» e da cegueira com que o processo, a todos os níveis, seria conduzido. Numa total inversão de papéis e segundo uma ética dificilmente digerível, a própria jornalista de investigação» se revelaria jornalista-testemunha» empenhada, através da mentira e do perjúrio, em crucificar as suas «fontes», ajudando a cruzada da magistratura.