Homenagem a Nuno Alpiarça

[Carlos Lopes]

Os que me conhecem melhor, sabem que não sou um adepto das redes sociais, mas hoje sinto que preciso escrever, sinto que quero partilhar com todos os que lerem estas linhas a minha sincera e sofrida homenagem ao Nuno Alpiarça.

Ao meu Amigo Nuno,
Conhecemo-nos no já longínquo ano de 1993, numa altura em que eu já treinava e competia mas em que não tinha um atleta-guia que pudesse verdadeiramente acompanhar-me nos treinos mais exigentes e nas competições.
Sem nunca teres lidado de perto com uma pessoa com deficiência visual, foste, desde sempre, empático, disponível, atento e solidário. Nunca deixaste que o facto de eu não ver fosse sinónimo de uma outra qualquer incapacidade, valorizaste sempre e sentiste orgulho pelos meus feitos, estiveste ao meu lado quando necessitava de um apoio ou de uma solução alternativa para realizar uma dada tarefa ou para ultrapassar determinado obstáculo.
Nunca te atrapalhou a minha deficiência visual, aceitaste-a com naturalidade, sem preconceitos e de mente e coração abertos. Recordas-te das pessoas que ficavam a olhar para nós porque caminhávamos lado a lado na rua e tu, muitas vezes, com a mão no meu braço, sem que as pessoas percebessem que eu era cego? Riamos e seguíamos em frente!
Recordas-te daquelas noites, em Paris, num bairro sem trânsito, em que tu e eu andámos de bicicleta, não numa bicicleta tandem, mas tu numa bicicleta e eu em outra! Falavas, tocavas a campainha e eu, pelo som, lá ia seguindo a trás de ti!
Observaste, falámos muito, estiveste sempre disponível para aprender, para ajustar, para melhorar o modo como corríamos juntos e como me guiavas.
Ficaste orgulhoso quando um dia alguém te disse que nós os dois a correr, vistos de lado, dava a sensação de que só uma pessoa estava a correr.
Decerto que não foi fácil adaptares-te ao meu modo de correr, mas nunca te ouvi um queixume, um desespero ou uma palavra menos correta.
Durante alguns anos, conciliaste os teus próprios treinos e competições com os meus treinos e competições. Treinavas sempre um pouco mais, por vezes com um esforço que só tu sabias, unicamente, e como tu próprio dizias, porque “quando o Carlos precisar eu tenho de estar lá forte ao lado dele….”
Recordas-te daquela final de 400 metros no Campeonato da Europa de 2001, em que o teu musculo rasgou e que, nos metros finais, fizeste tudo, ainda que a coxear, para terminar a prova? Ganhámos Nuno, dessa vez ganhámos, como ganhámos tantas outras vezes.
Sinto ainda os teus abraços em Sidney e em Paris e ouço-te a gritar aos meus ouvidos “ganhaste! Ganhaste!”.
Vibraste sempre com as minhas, com as nossas vitórias. Ficaste sempre genuinamente feliz com os meus sucessos, como só os verdadeiros e raros amigos conseguem fazer.
Nunca te ouvi regatear protagonismo, nunca te senti um qualquer sentimento menos positivo sobre este assunto, nunca falaste de dinheiro ou de quaisquer outros privilégios.
Foste sempre uma pessoa íntegra e correta. Durante 6 anos correste ao meu lado e, embora fosses já licenciado em educação física e treinador, nunca te ouvi um reparo ao treino que me era definido pelo meu ex-treinador.
Tiveste muita paciência, muita paciência mesmo, para aturar as minhas pressas, a minha contestação aos treinos, as minhas crises de ansiedade.
Foste sempre trabalhador, estudioso, metódico, organizado, não conformista, perseverante.
Corremos em muitas pistas e, quando necessário, em muitos parques e avenidas da cidade.
Convidaste-me para te acompanhar num período de férias e, ao final do dia, quando os outros iam descansar, nós íamos treinar nos sítios menos prováveis. Fizemos rampas na ilha de Fernando de Noronha, corremos e fizemos técnica de corrida na praia de Porto Galinhas, Corremos e fizemos treino de séries nos calçadões do Rio de Janeiro, do Recife e de Fortaleza.
Quantas vezes adaptaste o treino, sem condições, unicamente porque este tinha de ser feito? Recordas-te de teres improvisado uma sala de musculação no estacionamento do Centro Comercial Alvalaxia?
Nuno, tu eras assim…
Partilhámos tantas emoções, tantas experiências marcantes. Acompanhámo-nos, respeitámo-nos sempre, estivemos presentes, tu estavas ali à distância de um telefone, de forma incondicional, sem julgamentos prévios, nos momentos bons e nos momentos difíceis das nossas vidas.
São inúmeras as recordações e as imagens sempre boas e felizes de ti, sim, porque tu eras uma pessoa feliz.
Lembras-te de, na Finlândia, quando todos queríamos ir andar no lago de caiaque e porque não queríamos deixar a Gucci sozinha, tu a meteste no caiaque contigo?,

Nuno, obrigado!…

Não vou mais voltar a atender o telefone com um: D. Nuno, sim, porque era assim que agora brincávamos um com o outro. D. Nuno, D. Carlos…

P.S. Contaram-me que na passada quinta-feira, no início de um treino, te sentiste mal, que caíste, que ficaste deitado no chão, sim no chão, com dificuldades para respirar, sem assistência, que estiveste depois enfiado numa ambulância tanto, tanto tempo, quando o hospital era mesmo ali ao lado.
Tu Nuno, que sempre estiveste disponível e soubeste dar, parece que te faltou agora a assistência que tanto precisavas.
Embora nada te traga de volta, estarei ao lado dos teus muitos amigos e família que tudo farão para esclarecer o que sucedeu contigo e, se for o caso, quero muito que todas as responsabilidades sejam apuradas.

 

https://www.dn.pt/desportos/treinador-nuno-alpiarca-foi-vitima-vitima-de-covid-19-sem-o-ser-12145163.html

 

Comments

  1. Rui Manuel Fernandes Ferreira says:

    A minha mais sincera homenagem.

  2. Julio Rolo Santos says:

    Que bem que fica reconhecer as virtudes dos outros e reconhece-las publicamente. Bem haja.

  3. Carlos Almeida says:

    Com tanta guerra de vaidades fúteis, muito obrigado pelo seu testemunho amigo do seu amigo e sincero.
    Para nos lembrarmos todos que ainda há gente boa e sã
    Bem haja Carlos Lopes

  4. Luís Lavoura says:

    Fica muito bem ao Carlos Lopes este post.

  5. estevesayres says:

    A minha sentida homenagem…


  6. Condolência pelo falecimento do seu amigo. Mas, averigue o que puder. Não sabe o que é o desespero de tripulantes de ambulância com uma vitima grave nas mãos, um hospital a 5 minutos e estarem parados eternidades para obedecerem a um protocolo criado por alguem com muuuuuita calma. Força!

    • Carlos Almeida says:

      Tambem não devem ter passado bem e se calhar ainda continuam traumatizados, coitados