Enfeitiçadas, inquietas e confusas

É um standard do cancioneiro americano e já o cantaram Doris Day, Barbra Streisand, Carly Simon, Sinead O’Connor, ou (a minha versão favorita), Ella Fitzgerald. Foi escrita pela famosa dupla Rodgers & Hart para o musical “Pal Joey”, no já longínquo ano de 1940, mas em muitas das versões gravadas posteriormente a letra, tão ousada para a época, foi censurada e reescrita. “Bewitched, bothered and bewildered” (que talvez se possa traduzir por “Enfeitiçada, inquieta e confusa”) é uma canção rara porque se atreve a dar voz ao desejo feminino, sem recorrer à habitual capa do romantismo cor-de-rosa. Relato de uma paixão contada no feminino por uma mulher que se revela experiente (“Os homens não são uma sensação nova / saí-me bastante bem, acho eu”), sem pudor de fazer referência às qualidades dele que mais a atraem (“horizontalmente falando ele está no seu melhor”), e que no fim da aventura remata desta forma a sua história: “Romance, acabou. A tua oportunidade, acabou. As formigas que invadiram as minhas calças, acabaram. Enfeitiçada, inquieta e confusa – nunca mais”.

As passagens que mais nervosismo parecem ter produzido ao longo dos anos terão sido “I’ll sing to him, each spring to him / And worship the trousers that cling to him” (algo como “cantarei para ele, a cada primavera, para ele / e adorarei as calças que se prendem a ele”), e “vexed again, perplexed again / thank God, I can be oversexed again” (“irritada de novo, perplexa de novo / graças a Deus, posso estar sobressexuada de novo”). Foram adocicadas de maneira a que a pulsão sexual, esse estado de turbação que a canção descreve, se fosse diluindo num mais domesticável sentimento amoroso. O discurso feminino sobre o desejo gera incomodidade e não apenas nos homens. E a suposta libertação feminina nesse plano traduz-se frequentemente na apropriação de um discurso tipicamente masculino, que se reduz ao uso desassombrado dos termos que até há pouco nos estavam vedados, e na assunção de um comportamento predatório que era também exclusivo do outro sexo. Quero com isto dizer que me parece muito bem que uma mulher possa falar ou escrever sobre os homens que comeu, ou o que gosta de fazer e que lhe façam na cama, mas este discurso é ainda muitas vezes uma espécie de travesti do discurso masculino e parece mais destinado a produzir um choque na cabeça dos homens (e, sejamos sinceros, na de muitas mulheres) do que a dar voz a uma vivência feminina da sexualidade. Parece evidente que há apetência e fascínio por aquilo que as mulheres possam dizer a esse respeito (bom exemplo disto parece ser o sucesso do monótono “O sexo e a cidade”), ainda que muitas vezes esse interesse não vá além de voyeurismo. Encontrar um discurso próprio depois de séculos de silenciamento é um caminho tortuoso, e no qual talvez seja necessário explorar todas as estradas e todos os desvios. E neste campo, como em muitos outros, quem é poeta leva vantagem. Segredo Não contes do meu vestido que tiro pela cabeça nem que corro os cortinados para uma sombra mais espessa Deixa que feche o anel em redor do teu pescoço com as minhas longas pernas e a sombra do meu poço Não contes do meu novelo nem da roca de fiar nem o que faço com eles a fim de te ouvir gritar Maria Teresa Horta (“Minha Senhora de Mim”)