Os trintas

Os primeiros anos dos 30 são uma época complicada. Ensanduichados entre os quarentões e os jovens, estrebuchamos ante quem nos tenta fazer sentir velhos mas sabemos que por, mais que nos disfarcemos, os jovens já nos tratam por você. Eu disfarço-me, confesso. Sou a mais pelintra das mães que vão levar os meninos ao colégio, a única que se passeia de ténis e parece não ter nenhum par de calças que não sejam de ganga, a única que não sai de casa sem o mp3. Mas tudo isto não passa de uma vã tentativa de escapar ao inescapável. Eu já dobrei o cabo dos 30, já me instalei burguesmente na vida, por muito precária que seja essa acomodação, já faço análises ao colesterol e, se é certo que ainda resisto a rever os episódios do Verão Azul, mais cedo ou mais tarde hei-de soçobrar.

E  os trintões que me são próximos estão quase todos na mesma. Há uma inquietação que ainda estremece, uma luzinha trémula que os prende ao alvoroço da juventude, mas começa também a instalar-se a estranheza que faz olhar os códigos dos mais novos como algo que já não lhes pertence. Quando essa consciência surge, irrompe também com frequência o revivalismo. “O Dartacão é a melhor série de desenhos animados de sempre”. “Na nossa infância não havia cadeirinhas nos carros, brincávamos nas ruas, não sabíamos o que era a pedofilia e sobrevivemos”.  “Nunca mais se fez música como a dos anos 80/90!” “Os miúdos agora não sabem o que é bom!” O tom comum destes desabafos melancólicos parece ser o de que fomos muito menos privilegiados do que a geração seguinte, com menos gadgets, menos preocupações parentais, sem internet nem telemóvel, mas nesses alvores da década de 1980 ou 1990 vivemos um idílio dourado, pleno de uma inocência que entretanto se escureceu e que embalou os nossos sonhos de futuro.  Não tínhamos internet nem telemóvel, é certo, mas crescemos com a Perestroika, a libertação de Mandela, a queda do Muro, o Live Aid, e o MacGyver. Todos eles sinais de uma mudança positiva. A desadaptação que antes via nos mais velhos, e que sempre me parecia comovedora, está agora nas palavras das gentes da minha idade e isso já me parece alarmante. Porque atrás dos elogios fervorosos aos desenhos animados ou aos programas de videoclips do Álvaro Costa poderá vir futuramente um sentimento de não pertença ao mundo de hoje, de estranheza, de afastamento voluntário. Eu não quero ser como o senhor que sempre encontro no supermercado, que fica longos minutos a olhar para a montra da charcutaria e repete invariavelmente que no tempo dele só havia fiambre nobre e era bem bom, e que agora há não sei quantas marcas e até fiambre de peru. Peru! E essa multiplicidade de escolhas cansa-lhe os olhos e a cabeça, e fá-lo desejar o conforto do velho e fiável fiambre único. O revivalismo, uma armadilha da memória, tende a abrir a porta ao conservadorismo. Começa-se a romantizar o que passou e acaba-se a desejar que tudo fique na mesma, para todo o sempre, e assim também nós e a nossa juventude perdida, e aqueles que vimos partir e de quem não queríamos separar-nos. Amigos nos trinta, parece que estamos agora ante o portal que separa esses dois mundos. Esses dois tempos. Não temos muito mais a fazer senão avançar, claro, mas eu digo que deve ser possível lançar um olhar ternurento ao passado sem deixar de abraçar o que aí vem, não será?