Desejosamente…fugazmente viva

(pormenor - adao cruz)

 

Dizem as noites sem olhos que estás morta, excessivamente morta, provisoriamente fugazmente morta.

O electrocardiograma parece uma linha isoeléctrica, mas o coração pulsa. Há corações vivos que não pulsam!

O pulso do morto é o pulso de quem palpa o pulso do morto, todo o médico e enfermeiro sabe disso, mas ninguém lhes tira da cabeça que a morte ainda há-de oferecer, um dia, a alguém, um cálice de Porto.

O salto da neurobiologia ao pensamento está dentro da biologia evolucionária, e a morte que se acautele, porque o pensamento poderá libertar-se e marimbar-se para as suas ameaças.

Não esquecer, contudo, que a prenhez do pensamento pode tornar-se um suplício quando o défice do “ser” ultrapassa o voluptuoso incremento do “parecer”.

Dizem as madrugadas sonhadas que estás viva, fugazmente viva, provavelmente não excessivamente morta.

O orgulho da própria morte pode transformar-se numa embriaguez perigosa, que faz trocar a “velhice” dos vinte pela “juventude” dos cinquenta.

Traumatismos e superações são rosário de todas as vidas, plasticizadas ou não.

Pena é que o facilitismo da gestualidade se sobreponha à interpretação das matrizes da vida e redunde em arremedos de paraíso.

Dizem as manhãs acordadas que estás morta, excessivamente morta, desejosamente…fugazmente viva.

A força das palavras estranguladas

(Com especial abraço aos amigos aventares)

Mal-aventurada palavra, bem-aventurada palavra, espectaculosa ou mal-entendida, repentina, abandonada, terrosa ou etérea.

Penoso viver do lado direito, com obtuso cérebro que irradia uma luz cor-de-rosa de banal bom-senso, ridícula, religiosa e fria, estranho conúbio de cálculo e simetria.

Do lado esquerdo, vestígios de terra seca, retocados de sol e água, húmida palavra em secreta transição da estreiteza da vida para a infinita margem do sonho.

(Palavras tépidas, impuras, laterais, resplandecentes nas vitrinas de luxo, insalubres, umbrosas, sepulcrais).

(monumentais, desdobráveis, descobríveis, maduras de oiro e trigo e penoso desejo de céu azul no imenso tossir da poeira dos ideais insubmissos).

(Jactância lodosa, leitosa, grudada a translúcidos horizontes, respirando asfixia na secura de todas as fontes).

Dúctil criatura de aço e pés pequenos, em largos sonhos de vibração das manhãs de rosto alvo, sem distâncias nem delírios.

Bem-aventurada palavra (mal-aventurada palavra), viva (morta), sensual (fria), erecta (impotente), ofegante (sibilosa), rotunda (famélica), fremente.

Eu temo muito o mar, o mar enorme, solene, enraivecido, turbulento…se a minha amada um longo olhar me desse dos seus olhos que ferem como espadas, eu domaria o mar que se enfurece, com a força das palavras estranguladas.