“LARGOS DIAS TEM ABRIL”

Porque importa levar Abril em Maio pelo tempo que o segue, aqui fica este fragmento de memória e tributo ao 25 de Abril de Carlos Maia Teixeira. A fotografia é do Eduardo Gageiro.
LARGOS DIAS TEM ABRIL

“Faz agora 50 anos que concluía a Escola Naval e dava entrada na Escola de Fuzileiros. Se os tempos de luta contra a ditadura me tinham colocado neste preparo reconheço que 1972 foram dos mais conturbados e exigentes do meu existir. Aprendera com suor e lágrimas o significado do verbo resistir e a pausa no remate da licenciatura não augurava bons ventos nem melhores casamentos. A viagem náutica, de fim de curso, na fragata João Belo à Madeira pautou-se por uma certa falta de garbo: -Enjoei com pontual regularidade nos turnos na “casa das máquinas”, embora ultrapassasse sem sequelas os restantes turnos no navio. -Logo que atracamos na Madeira esqueci que ninguém abandona a embarcação sem permissão do Comandante e que só é concedido tal desejo com o mais graduado em terra.
Mas tinha águas de pena para curar nessas levadas e, no regresso à fragata, a coima foi ir nas máquinas até Maiorca onde sobrevivi como se fosse uma pescada… O cadete estava pronto para a sua comissão , em rendição individual, em Angola, no prestigiado Destacamento de Fuzileiros nº 6, em Lungué Bungo. Fui de avião para baptismo de andar no ar com outros meios e maneiras e não nos meus recursos para voar para longe dali, o mal afamado “saliente do Cazombo”.
Em treze anos de guerra colonial, com três frentes de combate na Guiné, Angola e Moçambique só faleceu, em combate, um oficial da Marinha de Guerra de Portugal.
Aqui, paredes meias com a Zâmbia, para onde íamos marinhar de helicóptero à caça de gambozinos. Deu para lembrar, com as tropas especiais africanas, o francês do Congo e com os pilotos da África do Sul, o inglês macarrónico. Levava o seu conceito de negritude bem estudado, pela pena de Leopold Shengor:
“Meu irmão branco:
Quando eu nasci , eu era negro.
Quando eu cresci , eu era negro.
Quando eu vou ao sol , eu sou negro.
Quando eu estou com frio , eu sou negro.
Quando eu estou com medo , eu sou negro.
Quando eu estou doente , eu sou negro.
Quando eu morrer , eu serei negro.
E você homem branco:
Quando você nasceu era rosa.
Quando você cresceu era branco.
Quando você vai ao sol fica vermelho.
Quando você fica com frio fica roxo.
Quando você está com medo fica branco.
Quando você fica doente fica verde.
Quando você morrer fica cinza.
Depois de tudo isso , homem branco , você ainda tem o descaramento de me chamar homem de cor.”
Mas só se vê bem com o coração.
Apesar dos verdes anos, a minha mãe ensinara-me na Escola Primária a virtude da igualdade ao ensinar-me a ler a “cidadela” e a escrever a quietude da fraternidade pela voz do mando do “principezinho”:
“Ser irmão é ser responsável. É sentir, ao colocar a nossa pedra, que contribuímos para a construção do homem. Libertar uma pedra nada significa se não existir gravidade. Porque a pedra depois de liberta não irá a parte alguma. Não te confessarei o meu desapontamento porque ele te levaria a desgostar de mim. Não te farei censuras; elas irritar-te-iam justamente. Não te darei razões para as minhas críticas porque não as tens. Se queres construir um navio não chames as pessoas para juntar madeira. Ou dar-lhes tarefas ou trabalhos. Mas ensina-os a desejar a infinita imensidão do mar.”
Em minha vida eu fui mar.
Em algum mar eu fui vida.
Antes de poder ouvir adivinhar
A voz do mar querer seguir.
Antes de saber andar ousar partir.
Até a ti chegar sem te ferir.
Tanto penar, para aí chegar.
Tanto sofrer, para partir.
A cor de viver, vermelha de doer
Terra do Graal
O verde do dever, ver para crer
Em Portugal.
Para te amar, bem junto a mim
Tanto querer em ti morrer
Até ao fim, o que há em mim.
Vida: Ensina-me a ver o meu mar.
Mar: Quem dera ser meu tua vida.
Acabada a comissão em África voltei à Escola de Fuzileiros , onde fui preso a 16 de Março de 1974. Não defendi as portas de Lisboa à aurora do 25 de Abril. Depois da clausura fui colocado no Instituto Superior Naval de Guerra, o que foi para mim uma comenda!
Assim nasceu Abril.
“Mostrei a minha obra prima às pessoas grandes e perguntei se o meu desenho lhes dava medo.
Responderam-me:
-Porque uma boina de azul ferrete daria medo?
O meu desenho não representava uma boina de azul ferrete. Representa o mostrengo do fundo do mar a engolir um elefante de ignorância e de servidão. Desenhei então a boina de azul ferrete por dentro a fim que as pessoas grandes pudessem entender melhor. Elas têm sempre necessidade de explicações detalhadas.”
Assim nasceu Abril.
É meu.
Sinto-o
E toco a sua essência.
Olho-o de longe
Até cansar a vista
Na linha do horizonte.
E vejo-o de perto
Como coisa íntima.
Cheiro os cravos da Liberdade
E oiço a “Grândola Vila Morena”
Como quem brinca
Quando faz amor.
E tanto tempo perdido.
É de crer que a terra lusitana
À força de tantas perdas
Tenha perdido a sua virgindade!
Só ficou esta réstia de sol
Que ano após ano nos diz
Que Portugal é Abril
Ainda que a correr…
Mas esta herança viva
Que não pode morrer.
Espécie de noivado a feijões
Ainda assim
Não há coisa mais pura
Nem promessa maior.
Menos belo do que sonhei
Com uma lágrima , talvez…
Mas meu!
Em nome de Abril
Que seja branca a esteva e o malmequer
E os campos lavrados de quietude mansa
Sejam breves as inteligência de aluguer
E urgentes os clamores de leal bonança.
Em nome de Abril
Que seja branca toda a matriz imaculada
A doença e a miséria seja leve de eventos
A raça dos homens mostrem cara lavada
E se prendam e se libertem dos momentos.
Em nome de Abril
Que seja vermelho o cravo e rubra a rosa
E nos possuamos na alma em compromisso
A voz dos inocentes se oiça em justa prosa
E a discórdia entre irmãos seja verbo omisso.
Em nome de Abril
Que seja vermelho o sangue e a resistência
E a natureza humana um ponto de verdade
Se viva o sortilégio do brio na existência
De sermos um povo na palavra Liberdade.”

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