Há quem goste de presumir distracção, como se um certo distanciamento das coisas do mundo, alguma incompatibilidade com o material, conferissem elevação e nobreza de espírito. Eu sou uma dessas pessoas, naturalmente. Nem valeria a pena vir atirar pedras se não me dispusesse a levar com alguma. Mas isto para dizer que, embora uma certa incompatibilidade com aspectos práticos continue a manifestar-se, tenho feito um longo caminho que me permitiu aprender a fazer coisas tão improváveis como verificar a pressão de pneus, abrir tampas de xarope à prova de crianças (não foi fácil) ou usar um ferro de soldar (nem perguntem).
Cada vez que se domina uma dessas tarefas, experimenta-se uma passageira sensação de triunfo, progride-se no grau de “adaptação à realidade” (o que quer que isso queira dizer), mas também se fica mais longe de qualquer coisa que não se sabe bem o que é, mas que se sente como um estado de puro idealismo e absoluta impraticabilidade.
Estes pensamentos regressam-me a cada Outono, quando devo retomar uma velha e nunca inteiramente vencida guerra com o guarda-chuva. Não é que eu seja tão inábil com o guarda-chuva como às vezes gosto de presumir (lá está, comecei por avisar), mas a verdade é que continuo a não conseguir impedir que ele fique preso entre os postes e as paredes, com o resultado invariável de que estou sempre a ser surpreendida por sacudidelas que me puxam para trás e me obrigam a lutar com o diabo das varetas até por fim soltar-me. E o pior é que reajo a todas com a surpresa de quem nunca tinha experimentado tal coisa. Com certeza que o problema é sobretudo de urbanismo, mas não posso deixar de reconhecer a minha inépcia.
Ora, acontece que esse mesmo objecto agora odioso, o guarda-chuva, já esteve no centro de uma experiência que eu vivi como poética, embora provavelmente mais ninguém que a viveu a tenha classificado do mesmo modo. Era eu muito criança quando me ofereceram o primeiro. Rapidamente percebi que era encantador enquanto se mantinha fechado e intratável depois de aberto. Virava-se com o vento, já então ficava preso nos postes, e era difícil de manter numa posição que impedisse que alguma parte de mim se encharcasse.
As suas potencialidades poéticas só me seriam reveladas num daqueles fins de tarde de Inverno que já parecem noite cerrada, ventosos, de chuva densa e constante, e em que a minha mãe e eu nos encaminhávamos para casa. Eu ia concentradíssima na tarefa de domar o guarda-chuva. Agarrá-lo, centrá-lo, voltá-lo de acordo com a direcção do vento… Tudo isto me parecia impossível de conciliar. Uma rajada súbita arrebatou-mo das mãos. E lá foi ele, aberto, a rodopiar a caminho dos céus, aonde não chegou porque uma nova rajada o sacudiu com violência e lançou para cima dos pára-brisas dos carros na lenta fila do engarrafamento. Saltou para um, logo uma nova rajada o empurrou para outro, e mais outro…. Um grande pião, colorido, aos pulos pelo engarrafamento. Que espectáculo maravilhoso! Dos carros ocupados por viajantes até aí sonolentos e enfastiados assomavam agora expressões de assombro: Que era aquilo? De onde saíra? O coro de buzinas soava-me como uma alegre marcha, decerto a saudar o meu guarda-chuva, que tinha operado o milagre de despertá-los do tédio com a sua graça inesperada. A minha mãe corria e eu ria-me de cada vez que ela não chegava a tempo, uma perfeita cena chaplinesca a que teria sido capaz de assistir toda a noite. Infelizmente, porém, a minha mãe conseguiu agarrar o fugitivo e regressou com um olhar furibundo que era uma promessa de descompostura que começou logo a cumprir-se. O guarda-chuva, murcho, encharcado e sobretudo estrangulado nas mãos da minha mãe, já nada tinha de poético e o nosso caminho até casa também não o teve (“Imagina que se partia o vidro de um carro!”).
Apresento esta história como atenuante. Porque ontem, encharcada até aos ossos apesar do inoperante guarda-chuva, cedi à tentação que me chegou sob a forma de rajada de vento e soltei-o de novo, pela primeira vez desde aquela primeira vez. O bicho odioso teve um espasmo no ar, deu uma semi-cambalhota e foi tombar sobre uma furgoneta abandonada, daí caiu ao chão onde tive de ir recolhê-lo, uma patética ruína que arrastei para o contentor. Sem metafísica, como um Esteves ensopado até aos ossos, regressei a casa e prometi-me comprar uma capa de chuva ou mudar-me para um país tropical, o que vier a dar mais jeito nos próximos meses, logo se vê.
Tenha paciência…,li prái 1/3 e UFFF!!!
O problema é seu, não do texto, J. Pimenta.
Mais um belo texto.
Continuo sem perceber o que leva as pessoas a insistirem na utilização de guarda-chuva, normalmente “made in China”, para enfrentarem chuva forte acompanhada de rajadas de vento. O dito objecto, que aberto e na sua forma original até tem alguma graça, acaba invariavelmente na forma de cadáver de arame retorcido das sargetas ou enfiado de qualquer modo nas papeleiras.
Apesar de menos romântico, um guarda-chuva mais forte, apesar de não parecer, pode resistir um bom tempo.
Como é que se repara na diferença? Boa pergunta.
O ‘nº de varas’ decide o caso – um 12 varas é difícil de encontrar.
deixei de crer no guarda-chuva.
O vento é quem mais ordena.
Há muito que a Carla não postava por aqui.
Nada é banal demais, para um bom cronista se inspirar.