Que nunca nos falte a bondade dos estranhos

Detenho-me à saída do hospital porque a porta está bloqueada por um grupo acabado de chegar. No centro do grupo está um velho em equilíbrio precário, ladeado de mulheres que tentam ampará-lo. Na confusão de braços à sua volta, o homem emerge como um colosso arruinado, prestes a afundar-se. As mulheres soltam gritinhos, risos abafados, há demasiadas mãos a puxá-lo para um e outro lado. E é então que lhe caem as calças, ao velho homem, e é assim que ele me aparece, à porta do hospital, com as calças caídas no chão e a ignominiosa fralda à mostra de todos. Ao meu lado, de saída também, e à espera que a passagem obstruída pelo grupo fique livre, uma mulher abafa uma risada.

O homem tem um rosto corado, um pouco tumefacto, e não está claro se mantém a lucidez. As mulheres sobem-lhe as calças, seguram-no quando, num momento de atrapalhação delas, ele quase se derruba sobre si mesmo, e fazem-no risonhas, como se houvesse algo de burlesco em tudo aquilo, e tratassem com uma criança pequena, ou com um pobre tonto de quem todo o bairro faz pouco. [Read more…]

elogio de Humphrey Bogart

Foto: Yousuf Karsh

Cada vez gosto mais do Bogie. E olhem que pode ser complicado a gente gostar dele. Quando se cresce a levar com Tom Cruise a fazer coquetéis (é assim que se escreve?) não é fácil afirmar a preferência por tipos de tez acinzentada pelo tabaco e mortos há mais de 30 anos. Tipos que, reparem bem, nasceram em 1899 (!), coisa espantosa para um galã de cinema. Não é por ele fumar como um carroceiro e não ser o Tom Cruise que eu gosto dele, embora ambas sejam características que me podem levar a simpatizar com uma pessoa, mas porque o Bogart tinha aquela aura (conquistada em grande medida, mas não em exclusivo, com o seu Rick Blaine) de tipo generoso, incapaz de virar a cara ao sofrimento alheio, mas sem pachorra nenhuma para as lamechices. E eu acho que o mundo está a precisar urgentemente de gente dessas.

Já não há sais de frutos suficientes para tantas criaturas que querem dar-nos abraços grátis (como se habitualmente eu pagasse por eles), que nos entopem as caixas de correio electrónico com imagens de cãezinhos, gatinhos e outros bichinhos em poses Walt Disney, ou de criancinhas angelicais,  ou que nos dedicam chi-corações (é assim que se escreve?) e “beijos no coração” (argh!), ou que acreditam que a existência dos pobrezinhos é necessária para que possamos exercer a cristandade, e nos saturam com a descrição inflamada da sua própria generosidade, e outras coisas abomináveis. Por mim, a regra é simples: se tenho dúvidas quanto à lamechice de alguma coisa, basta perguntar-me: “O Bogart faria isto?” [Read more…]