A máquina do tempo: José Gomes Ferreira – um «lisboeta» nascido no Porto – 1

Hoje vamos viajar ao longo da vida de um grande escritor – José Gomes Ferreira. Nascido, em 1900, no Porto, «premonitoriamente na Rua das Musas», como se diz no vídeo, freguesia de Santo Ildefonso, viveu em Lisboa a partir dos quatro anos. E, tal como Camilo Castelo Branco, nascido em Lisboa, foi um homem e um escritor do Norte, José Gomes Ferreira, foi um homem e um intelectual de Lisboa. «A minha Aventura Poética começou aí por volta de 1908, tinha eu os meus oito anos, no dia em que reparei (ou procedi como se reparasse) na existência das palavras».

 

O fragmento da entrevista conduzida por Eduardo do Prado Coelho, bem como a leitura do actor João Mota do texto autobiográfico, são elucidativos. A intervenção política começou também cedo: com dez anos, em 4 de Outubro de 1910, na véspera de a República ser proclamada, veio para a rua, com um bando de miúdos, prendendo num cabo de vassoura uma bandeira verde e vermelha feita de papel de seda, onde colou com letras recortadas um vibrante «Viva a República!». O pai, democrata e republicano que viria a ser deputado por Lisboa, teve por certo influência na precocidade com que adquiriu consciência política .

 

 

Morou na Vila Rodrigues, na Calçada do Monte Agudo onde no final da década de 20 nasceu o Bairro das Colónias. Muitos anos depois, em 1958, soube que a escritora Irene Lisboa morara também na Calçada do Monte Agudo, na Vila Rodrigues, em casa pegada à sua. Numa conversa em casa de José, poucos meses antes do falecimento da escritora, descobriram essa vizinhança e que o «Zeca» que Irene ouvia chamar, era a mãe do poeta querendo saber onde parava o filho traquina, sempre empoleirado em muros ou trepando a nespereiras.

 

Depois de uma má experiência no Liceu Camões, passou para o Gil Vicente, onde teve como professor Leonardo Coimbra, com quem estudou os poetas saudosistas. E outros mestres distintos: Newton de Macedo, Damião Peres, Câmara Reys… Tornou-se amigo de todos ou de quase todos. Dirigiu a revista Ressurreição – «Revista de Arte e Vida Mental», na qual Fernando Pessoa colaborou com o soneto Abdicação. Em 1918 publicou o seu livro de estreia, o poemário Lírios do Monte, obra que retirou da sua bibliografia.

 

A música foi outra das suas paixões. Inspirado no romance Os Meus Amores, de Trindade Coelho, compôs um poema sinfónico, Idílio Rústico, que se estreou em 1918 no Teatro Politeama executado por uma orquestra dirigida por David de Sousa. Quando abandonou a via musical, Luís de Freitas Branco disse ter-se perdido a esperança de um notável compositor.

 

Foi também neste ano que se filiou na Liga da Mocidade Republicana e queimou no Café Gelo um retrato de Sidónio. «E todavia quando, empurrado por Leonardo Coimbra e dentro da coerência da linha paterna, entrei no coro prestativo contra o histérico consulado de Sidónio Pais, nem de longe suspeitava a que ponto chegava a minha carência de vocação para a acção política.»

 

À breve ditadura sidonista encerrada com o assassínio do «presidente-rei», em 14 de Dezembro, seguiu-se a ameaça da Monarquia do Norte – Em 19 de Janeiro de 1919, os monárquicos encabeçados por Paiva Couceiro, proclamaram no Porto a monarquia. Quase todo o Norte do País e uma parte da Beira-Alta aderiu à sublevação. Em Lisboa, a guarnição de Monsanto, revoltou-se também contra a República. O nosso José, alistou-se no Batalhão Académico Republicano e, após breve treino militar em Tancos, participou na breve guerra civil que assolou o País. No Porto, a 13 de Fevereiro, eclodiu um movimento republicano chefiado por Sarmento Pimentel. Quatro dias depois, o último bastião monárquico, em Vila Real foi vencido. O episódio da Monarquia do Norte terminara. José voltou à Faculdade de Direito.

 

Os Cafés da Baixa lisboeta eram, nas primeiras décadas do século XX, centros de discussão, sedes de tertúlias artísticas e políticas. Ali se criavam revistas, se combinavam conspirações, se projectavam obras literárias. José Gomes Ferreira foi, por estes anos 20, assíduo frequentador do Martinho, do Portugal, do Gelo, da Brasileira, do Chiado… habitats do sonho e do pesadelo que os cafés eram naqueles anos vinte e continuaram a ser até que, pelos anos sessenta, começaram a ser «reconvertidos», reciclados – bancos, companhias de seguros, agências de viagens, cafetarias, pizzarias…

 

1921 foi o ano em que publicou Longe, outra colectânea de poemas que viria a considerar obra menor. Porém terá surpresas. Mais de dez anos depois, Soeiro Pereira Gomes dir-lhe-á: «A minha mulher e eu namorámos através do Longe…» e Fernando Lopes-Graça, que comprara o livrinho na Feira do Livro em 1942, musicou três sonetilhos. Se serviram para um grande escritor namorar e para um grande musicólogo os musicar, os poemas não podiam ser tão maus como ele julgara.

 

Em Novembro de 1925 foi nomeado cônsul de Portugal em Kristiansund, na Noruega. «Por fortuna não passei de cônsul de 4ª classe» (…) «e fora de todas as carreiras». No Porto, embarcou no paquete Sicília, rumo a Oslo. No comboio de Oslo para Trondjem, atravessando planícies de neve, escreveu: «A pior solidão é a que me espera agora: a de ter de esconder a minha verdadeira personalidade. Ai de mim se não conseguir aparentar a banalidade altiva dos medíocres! Tomar-me-ão por parvo.»

 

Aprendeu a língua norueguesa, que lhe soava «como uma arcada de violoncelo». Ao fim de dez meses lia jornais com desembaraço e, com a ajuda de dicionário, conseguia ler romances policiais. Mais seis meses e começou a mergulhar em Ibsen, Björnson, Alexandre Killand, Knut Hamsum. Aproveitou a solidão para de novo compor música – «meia dúzia de ninharias desprovidas de ânsias de futuro», diz com modéstia.

 

As cartas dos amigos mitigavam as saudades de Lisboa: «Por aqui tudo velho. Continuo a encontrar o Fortunato, continuam as tardes na Bertrand – o mesmo de sempre!», dizia Ferreira de Castro em Abril de 1926. «Lisboa está linda. As olaias floresceram mais cedo…» afirmava-lhe Alfredo Brochado pela mesma altura. No São João desse ano, depois do Movimento de 28 de Maio, Brochado perguntava: «Você já sabe que vivemos em regime de ditadura?» Já sabia. E assim passou o «interregno norueguês», como designou estes cinco anos.

 

(Continua)

 

A máquina do tempo: traduttore, traditore

 

Hoje, a nossa viagem vai fazer-se por uma região pouco conhecida e ainda menos valorizada do planeta da literatura – a tradução. Nesse mundo mágico da criação literária, onde acontecem prodígios como a «Eneida», o «D. Quixote de la Mancha», o «Hamlet» ou a «Guerra e Paz», movem-se, quase como invisíveis duendes, os tradutores que, «à force de reins et de sueur», como disse Gustave Flaubert, conseguiram que muitos milhares de milhões de leitores fossem ao longo das gerações conhecendo a Ilíada, Dante, Cervantes, Tolstoi, Kafka, o que não é proeza pequena, sobretudo se nos lembrarmos que é cometida por seres praticamente invisíveis.

Invisíveis, porque, tal como acontece com os árbitros de futebol, o melhor que pode acontecer a um tradutor é passar despercebido. Quanto melhor tiver feito o seu trabalho, menos consciência deverá o leitor ter da sua intervenção. A tradução ideal, portanto, assemelhar-se-ia a um vidro muito perfeito, transparente e limpo, através do qual se pudesse ler o original, mas na língua de chegada. Um vidro que não distorcesse as imagens. Que não se visse, a bem dizer.

 

Na maioria dos casos, a tradução empobrece o texto original. Há casos, porém, como na tradução que Blaise Cendrars fez de «A Selva», de Ferreira de Castro, ou a que Jorge Luis Borges fez de «The Wild Palms», de William Faulkner. Que são exemplos em que o vidro que se interpõe entre a língua de partida e a de chegada não está limpo nem sujo, mas sim esmerilado pelo estilo genial dos tradutores. No caso da tradução de «A Selva», com a sua ironia cáustica, Almada Negreiros, aludindo ao estilo rude e primário dos primeiros livros de Ferreira de Castro, dizia que o ideal teria sido pegar na tradução em francês, feita por Cendrars, arranjar um bom tradutor e verter então a obra para português.

Gabriel García Márquez foi ao ponto de declarar que a versão inglesa de «Cien años de soledad», feita por Gregory Rabassa, ultrapassa a sua obra em qualidade literária. Tradutor, traidor, como diz o famoso aforismo italiano: estaremos nestes casos, como o de Cendrars ou o de Rabassa, perante boas obras literárias, mas más traduções, ou apenas em face de excelentes traições?

O catalão Joaquim Mallafré coloca o problema da tradução através de uma regra de três simples: «a obra original está para o leitor da obra original, assim como a tradução para o leitor da obra traduzida» e acrescenta – «o tradutor assume o papel do autor, repetindo a mesma obra noutra língua». É uma boa maneira de ver o problema.

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Sou um leitor compulsivo e tenho sido, ao longo da minha vida profissional, tradutor compulso – isto é, numa certa fase da minha vida, compelido pela necessidade de ganhar a vida, e noutra compulsado pelas circunstâncias – as mais de as vezes por ser necessário executar o trabalho com urgência e não haver ninguém à mão capaz de o fazer dentro do prazo exigido. Como leitor sofro muito com as más traduções, com as trapaças, com a falta de brio profissional; como tradutor, sofro com a perpétua e justificada desconfiança do meu saber. Mesmo quando se trata de um vocábulo estrangeiro milhares de vezes por mim usado, vou sempre verificar se não haverá qualquer acepção menos vulgar que me tenha escapado. Sofro, sobretudo, quando, depois de editado o trabalho, descubro erros que deveria ter evitado.

Não vou aqui referir erros de tradução, pois isso obrigar-me-ia a falar de nomes, coisa que não quero. Depois, sei em que circunstâncias muitas vezes as traduções são feitas. Prazos exíguos, pagamentos parcos e ainda por cima incertos. Até há duas décadas atrás, as traduções eram geralmente pagas à página (30 linhas de 70 caracteres = 2100 caracteres). Hoje, com o trabalho feito em computador, usa-se mais como unidade de referência os conjuntos de 2000 caracteres. Mas, de uma forma geral, continua a ser um trabalho mal pago. Isto, quanto a mim, não desculpa que se façam as traduções que por aí aparecem. Já trabalhei por todos os preços desde o zero até ao bastante bem pago. O cuidado que ponho nos meus trabalhos é sempre o mesmo. Com esta afirmação, não pretendo ser modelo de coisa nenhuma, até porque conheço muita gente que procede exactamente como eu. O pior são os outros.

Estas reflexões sobre a tradução foram-me sugeridas por um livro que acabei de ler. Não vou dizer o título, pois isso poria em cheque o tradutor. Apenas um pormenor. Na obra, um romance, aparece repetidamente um sótão que se verifica pela descrição romanesca ficar no subsolo. Como o livro é traduzido de um original norte-americano, a confusão seria entre «attic», «loft» ou «garret» e «cave» (verifiquei, depois, compulsando o original, que a palavra usada foi «cave»). Embora não fosse exactamente o que se pretendia, a palavra portuguesa «cave» serviria razoavelmente, não se verificando o clássico problema dos «falsos amigos» – o ideal seria talvez «caverna».

O que se teria passado para que uma caverna subterrânea aparecesse transformada num sótão? Muito simples: a tradução não foi feita do inglês, como expressamente se indica na ficha técnica, mas sim do castelhano. Em castelhano, cave diz-se «sótano» e «sótano» – está-se mesmo a ver, não está? – só pode ser sótão! Temos, portanto, um tradutor que por ignorância ou preguiça substitui o original por uma tradução espanhola, mas que não sabe castelhano (o português da tradução é muito razoável, no entanto). Exemplos como este, de más traduções e de trapaças como esta são às centenas.

Por tudo o que fica dito e pelo muito que aqui não cabe dizer, se entende como é difícil traduzir. E como é difícil avaliar traduções, pois já tenho deparado com traduções globalmente mal feitas onde há problemas muito bem resolvidos. O contrário também acontece. Não entendo, por isso, como por vezes são atribuídos prémios de tradução, usando talvez critérios jornalísticos (falo de prémios atribuídos por jornalistas), mas sem a intervenção de especialistas, nomeadamente universitários. Como sabem eles que as traduções estão bem feitas? Mistérios.