Série Maridos (VII)

ASCENSÃO DE UM MARIDO

Conheces um homem amável e dispões-te a amá-lo – e por isso ama-lo, e até mesmo quando quase esqueceste o sorriso dele, ama-lo, e dedicas-te a essa ideia de amá-lo com paixão (e até na fuga metes paixão, e ele gosta, claro), e de repente é como se todos os outros homens te parecessem de alguma forma impossíveis no seu mistério masculino, porque é no coração do homem que agora amas o teu lugar natural. E um dia aceitas que o homem diga com grande naturalidade
– o teu homem.
Atenção: é nesse momento que ele te rapina. É quando deixas que a mão dele possa ficar indefinidamente pousada no teu dorso que ele te captura. Se tiveres medo, foges. Tens medo, claro. Tens medo que a carícia dele se transforme noutra coisa, a mão transformada numa pata, tu lá debaixo à toa, o homem resplandescente, quase a transformar-se… num marido!

Série Maridos (VI)

MEU BEM

Chegaram à hora de almoço a casa do comandante, e lá estava o comandante, e lá estavam também outras pessoas, e os criados, e também alguém que lhe pareceu logo que era alguém importante. Começaram a beber vinho português e assim foi a tarde toda – lagostas, ostras, vinhos e outras iguarias portuguesas, enquanto os criados iam pondo discos de música africana para que todos pudessem dançar. Às tantas, o homem importante disse-lhe ordenando
– Vamos dançar! [Read more…]

Série Maridos (V)

MADAME VIAN

Julgo que soube que ele era meu marido quando li A Espuma dos dias pela segunda de muitas mais vezes. Entretanto, especializei-me na observação das formigas e na audição das suas canções, cantadas por ele e por outros: Je Bois, J’suis Snob, La Java des Temps Modernes, La Complainte du Progrès (esse hino à vida conjugal), e também aquelas canções celebradoras da vida, dos dias de sol, da magia das ruas da grande cidade, como a belíssima La Rue Watt, e por aí fora. Mas foi quando o traduzi (uma compilação de citações e aforismos seus) que confirmei esse casamento espiritual extraordinário. Comunhão que de resto me levara já a criar para um romance uma personagem chamada Boris Viana, ser incerto e múltiplo que quisera ser poema e surge fantástico num cenário português realista e salazarento a andar de eléctrico 28.

Bem sei que nasci cinco anos depois de Boris ter morrido. Que importa isso? Conheço uma mulher que é espiritualmente casada com o fotógrafo Nadar, que é ainda mais antigo. Mme. Nadar.

N’oublie pas ton tricot quand tu partiras ta trompinette sous le bras, il fait froid mon amour. (Não me lembro de ser assim tão carinhosa e maternal com nenhum marido real. Conclusão: um bom marido faz uma boa mulher.)

Série Maridos (IV)

UM PASTOR

Para que serve um marido? perguntou ela repetindo a minha pergunta como forma de ganhar tempo para alinhavar argumentos.

Um marido é uma espécie de almofada fofinha. As pessoas hoje em dia, as que são como eu, preconceituosas, não querem essa carga do casamento. Para mim o marido só fez sentido a partir dos 40 anos – mas mesmo assim custa-me a engolir… Porquê? Porque fazemos parte de uma cultura muito adolescente, que nunca quer assumir esses papéis. Até aí, com os homens, eu só tinha partilhado casas, tido filhos, partilhado também riscos na vida, problemas… Com este marido é uma espécie de cruzeiro: cá vamos nós bem-dispostos no meio da vida.

Um marido é um pastor. É um descanso, ter assim um bom pastor. Podemo-nos distrair com outras coisas, é óptimo. Mas são as mulheres que suportam as crianças, naturalmente as mulheres estão mais atentas, é uma coisa que acontece naturalmente. Às vezes é preciso fazer um esforço para deixar espaço ao marido, há muitas mulheres que dizem que deixam esse espaço mas vai-se a ver e é só na teoria, porque depois criticam constantemente o marido, e controlam tudo o que faz, e por isso é como se não dessem o espaço… e isso intimida os homens e estraga os casamentos. É preciso deixar o pastor fazer.

Série Maridos (III)

UM MARIDO CLANDESTINO

F. era uma mulher trabalhadora, que saía de casa infinitamente cedo, para fazer um trabalho matinalíssimo que nunca percebi em que consistia. À tarde, logo a seguir ao almoço, regressava a casa, tomava um banho de imersão e estendia-se ao comprido no sofá da sala. Pelas cinco da tarde começava a receber amigos. Bebiam vinho branco e comiam marisco. Conversavam até apetecer.

F. tinha dois cães e vários gatos belíssimos, de pelagens e cores diferentes, espalhados pela casa e estacionados em toda a parte – nos sofás, em cima dos móveis, no topo das estantes. Os gatos de F. pareciam criados indianos dedicados à esteta tarefa de enquadrar a mulher num ambiente atapetado e requintado.

Naquele dia descobri o marido de F. a fumar cigarros franceses Gauloises Maȉz na varanda da cozinha da casa de F.. Vivia no quarto contíguo à cozinha, onde passava a totalidade do tempo que estava em casa. Explicou-me que estavam separados há anos mas que haviam decidido permanecer no mesmo espaço por falta de liquidez para adquirirem outra casa. Faziam vidas aparte, cada um entregue à sua solidão, e o marido de F. retribuía o alojamento passeando os cães da mulher.

Série Maridos (II)

FRUTOS SECOS

Era um homem pequenino, nervoso, revoltado com as circunstâncias da vida que haviam feito com que, ainda tão novo, andasse pelos dias sem ser marido de ninguém. Naquele jantar, foi ele que tratou de tudo.

– Ai as mulheres de hoje em dia não prestam mesmo para nada!

dizia nostálgico de tempos que não podia ter conhecido, mas cheio de ensinamentos antigos. Foi ele que cozinhou o jantar, ele que o preparou e se manteve de olho no forno, ele que afastou as mulheres da cozinha.

– Ai dá Deus nozes a quem não tem dentes!

Ele, uma maravilha de uma noz, ainda rijinha e estaladiça, bebia cervejas pelos dias por não ter uma mulher para comandar,

– Anda, sai lá daí que tu não percebes nada disto!

para castigar,

– Ai havias de ser minha mulher e ias ver o que te acontecia!

para censurar,

– E ainda dizem que os homens não são bons cozinheiros!

Enfim, um desperdício.

Série Maridos (I)

SPYROS

O meu marido era o magnata de uma aldeia em Creta. O restaurante onde eu comia todos os dias era dele, e também a agência de viagens, e o hotel, e a loja de aluguer de bicicletas, e o rent-a-car, e o supermercado, e a loja de souvenirs, e os táxis, e a transportadora. A ilha era longínqua, a aldeia distante, plantada na costa sul. Era bom ter maneiras de sair dali. Quando eu olhava o mar, parecia-me ver o fim, juraria que depois do horizonte havia uma montanha (ou talvez um Deus-muro, enorme como um King-Kong) que separava dois mundos – e por isso aquele mar era de certa forma o último. A história daquela ilha, cheia de mitologia, tornava tudo impreciso, fazendo esbater as fronteiras entre a realidade e a ficção. Um véu de incerteza pairava no ar da praia, nas conversas dos naturais sobre o labirinto de Knossos ou os restantes lugares arqueológicos da ilha, transportando todos para uma dimensão simbólica cheia de fatalidade. Sentia-me circunscrita – sobretudo pela acção do meu marido.

O meu marido chamava-se Spyros. Tinha um bigode e uma barba, e umas bochechas proeminentes. Deslocava-se de Mercedes pela aldeia e aparecia por todo o lado, a todo o instante, sem se fazer anunciar. Cortejava-me sem constrangimentos, sentava-se à mesa sem ser convidado, impunha-se com a naturalidade de um príncipe, determinado a fazer de mim a sua princesa. Expliquei-lhe que não podia ser sua mulher, porque já tinha um marido, que aliás viajava comigo, e a quem embora divertissem os arremessos arrebatados de Spyros, começou a dar mostras de alguma irritação. Mas o meu marido agia como se nada fosse, sorrindo sempre muito. Vi-me cheia de filhos com bochechas iguais às do pai, demasiado bem nutridos, a andar de Mercedes pela rua principal da aldeia – e os meus filhos bochechudos não falavam português.