UE sem palavras com o coronavírus a limitar o trabalho dos intérpretes

[tradução: Nuno Bon de Sousa]

Versão portuguesa de artigo publicado no POLITICO de 30 de Abril de 2020 e actualizado hoje, 25 de Maio de 2020.

A tradução é de Nuno Bon de Sousa.

***

Linguistas definham enquanto Bruxelas adopta o distanciamento social e reuniões virtuais.

Por Maïa de la Baume 30/4/2020
(actualizada em 25/5/2020)

O coronavirus turvou a clareza e aumentou o ruído na bolha de Bruxelas.

A pandemia reduziu de forma drástica o volume de interpretação oferecido pelas instituições europeias, o que levou ao cancelamento de contratos de intérpretes freelance e deixou os representantes europeus com dificuldades de expressão.

Há duas semanas, Sandra Pereira, uma eurodeputada portuguesa da extrema esquerda, comunicou numa reunião da Comissão da Indústria do Parlamento Europeu que “lamentava” não poder falar na sua língua materna “num momento em que os tradutores e intérpretes estão a ser afastados.”

Numa reunião da Comissão de Assuntos Externos do Parlamento Europeu, o Presidente, David McAllister, pediu aos eurodeputados que falassem “na sua língua materna se for uma daquelas para as quais há interpretação.” Posteriormente pediu a um eurodeputado “que falasse inglês, porque os intérpretes já cá não estão.”

Apesar do distanciamento social e da proibição de viagens, o Parlamento afirma conseguir agora fornecer interpretação em todas as 24 línguas da UE para as sessões plenárias. Inicialmente não houve interpretação de gaélico e maltês, porque os intérpretes freelance dessas línguas não se podiam deslocar a Bruxelas.

“Os intérpretes garantem o multilinguismo da UE e são essenciais para a manutenção dos trabalhos e funcionamento das instituições” – Terry Reintke, eurodeputada alemã.

Mas nas comissões parlamentares, o caso muda de figura. Só estão disponíveis oito línguas por sala e há apenas um intérprete por cabina, em vez de dois ou três.

Os linguistas estão também a utilizar uma aplicação chamada Interactio para prestar serviços de interpretação simultânea em reuniões online. “Mas os intérpretes precisam de ver os oradores ao vivo,” disse um intérprete, que pediu para não ser identificado para este artigo devido às regras de confidencialidade muito rigorosas da sua profissão. “Nessas reuniões perdemos o contexto e o nível de concentração necessário aumenta o nosso cansaço.”

“É-nos mais difícil descodificar a mensagem do orador,” acrescentou o intérprete.

As reuniões nas outras instituições principais, a Comissão e o Conselho, foram drasticamente reduzidas, o que significa muito menos trabalho para os intérpretes.

Isso foi especialmente penoso para o grupo de 1.200 intérpretes freelance que garantem cerca de metade dos serviços de interpretação simultânea das instituições da UE. Muitos viajam entre os seus países e Bruxelas e vêem-se agora isolados em casa, sem saber quando voltarão a trabalhar.

Temem que se as reuniões não voltarem brevemente ao normal, sejam cancelados todos os contratos freelance e a UE não consiga funcionar devidamente com as suas 24 línguas oficiais.

“Estamos confinados um pouco por toda a Europa e sem trabalho,” disse outro intérprete. “Ficamos a pensar: será que vão retomar as reuniões antes do Verão?”

As instituições da UE têm 800 intérpretes funcionários e 3.200 freelances, dos quais 1.200 têm contratos regulares, segundo dados oficiais e um porta-voz do Parlamento. Muitos intérpretes freelance trabalham nas três instituições principais da UE, bem como noutras, como é o caso do Tribunal de Justiça.

Porém, as medidas introduzidas para controlar a propagação do coronavírus – tais como a redução do número de reuniões físicas, a imposição de regras rígidas de distanciamento social e reuniões online com interpretação mínima – significaram uma redução drástica da quantidade de trabalho.

As instituições deixaram de utilizar intérpretes freelance tanto em contratos de curto, como de longo prazo.

O Parlamento cancelou os contratos freelance a partir da última semana de Maio, mas pagou os contratos de Março e Abril. (Ao abrigo das normas da UE, as instituições têm de cancelar contratos com 60 dias de antecedência ou pagá-los por inteiro.)

Terry Reintke, uma eurodeputada alemã dos Verdes, exortou o Parlamento a encontrar formas de auxiliar os intérpretes durante esta crise.

“Os intérpretes garantem o multilinguismo da UE e são essenciais para a manutenção do trabalho e o funcionamento das instituições,” disse Reintke, que redigiu, juntamente com vários colegas, uma carta ao Presidente do Parlamento David Sassoli sobre esta questão. “É claramente uma responsabilidade do Parlamento Europeu zelar pelos seus intérpretes freelance, já que não são abrangidos pelas medidas nacionais.”

Alexandra Geese, outra eurodeputada alemã dos Verdes, que já trabalhou como intérprete para a UE, disse que muitos dos seus antigos colegas freelance “não estão abrangidos por qualquer tipo de segurança social em país algum.”

Acrescentou que o Parlamento está a pensar oferecer “algum tipo de pagamento antecipado ” mas a UE tem de fazer mais.

“As instituições da UE deviam ter vergonha. Dizem ‘precisamos de solidariedade na UE’, mas estas pessoas não recebem solidariedade alguma,” disse ainda a deputada.

Comissão fora de serviço

A Comissão Europeia é um dos maiores empregadores de intérpretes na UE. Em tempos normais fornece diariamente interpretação para 40 a 50 reuniões, segundo um porta-voz.

Neste momento a Comissão está a fornecer interpretação a cerca de cinco reuniões físicas por dia, disse o porta-voz. Os linguistas da Comissão estão ainda a interpretar em videoconferências, tais como um evento internacional de angariação de fundos para combater o coronavírus, que teve lugar este mês.

No Conselho da UE tem havido interpretação “parcial” em reuniões de embaixadores, segundo um funcionário do Conselho. As reuniões de ministros por videoconferência têm tido de decorrer sem interpretação fornecida pelo Conselho, disse a mesma fonte.

Até a videoconferência mais recente de líderes da UE, como a que teve lugar entre o Presidente francês Emmanuel Macron e a Chanceler alemã Angela Merkel decorreu sem interpretação fornecida pelo Conselho.

Numa tentativa de resolver os seus problemas, os intérpretes freelance tiveram no mês passado uma reunião online com as três instituições. Está planeada uma reunião semelhante para finais de Maio.

Para já, no que toca à sua profissão, os intérpretes parecem confiantes de que a chave para as coisas voltarem aos eixos é clareza na comunicação.

“Estamos a lidar com as instituições através do diálogo social,” disseram numa declaração assinada pela sua equipa de negociação na sequência da reunião de 24 de Abril. “Não há dúvida de que estes problemas se resolverão, como sempre ocorreu na história da UE.”

Aitor Hernández-Morales e David M. Herszenhorn contribuíram para a notícia.