No café dos millennials, onde em cada mesa se encenam pequenos dramas em que só muda o filtro de Instagram, sento-me com uma revista literária espanhola, um número dedicado à loucura. Detenho-me numa história absurda, a de um apartamento em Ourense onde se esconde, não pela intenção de permanecer secreta, mas pelo desinteresse de todos, a colecção de livros de ou sobre o Nobel da Literatura Rabindranath Tagore mais valiosa do mundo. Por cima de uma loja de fertilizantes, adubos e rações, é o único espaço alugado numa galeria comercial em decadência. Grafitis nas paredes, heroinómanos a injectarem-se à porta, casais sem dinheiro para um quarto de hotel.
O apartamento custa 230 euros por mês a José Paz, professor reformado da Universidade de Vigo, leitor de Tagore desde 1964, coleccionador sem freio. Alugou-o apenas para a colecção. Cinco quartos, alguns sem luz eléctrica, onde não há mais do que Tagore. Estima que devem ser uns 30 mil títulos (parte da colecção está na Índia, numa casa que mantém alugada para aí passar metade do ano), sem catalogar, à espera que uma instituição aceite a colecção e a dignifique. Nenhuma parece interessada em fazê-lo.
Não há campainha na porta, nunca há visitas. José Paz não vive ali, embora mantenha uma cama atrás da porta de um dos quartos para as sestas e para as noites em que fica a dormir com os livros. Não é o medo de ser roubado que o leva a pernoitar porque, como afirma, ninguém rouba livros. Então é por quê? O artigo não revela.
Chega o meu “café de especialidade”, um lote com nome bizarro que esqueço em seguida. Tal como os outros que aqui provei, também este me sabe a vinagre, mas vou insistindo porque gosto das cadeiras e da luz do lugar.
Por que não vai para casa, em certa noites, o louco José Paz e fica antes a dormir no quarto sem luz, com livros até ao tecto, e os marginais da cidade a rondar-lhe a porta? – pergunto-me. Pela esperança de morrer durante a noite e aí ficar, esquecido pelo mundo, a fundir-se com a matéria da sua obsessão, a morte mais feliz a que poderia aspirar. Para sua desgraça, no dia seguinte acorda.
Bom, bom.
A Carla Romualdo deveria editar um livro com todos os textos fantásticos que nos oferece neste blogue.