“Nosso Senhor não é mouco!”, disse a beata-mor

Persona 1 – Profissional feminino de igreja – no sentido depreciativo tão bem definido pela Infopédia – dando-se ares de sua dona, tem um ar acentuadamente masculino: na forma como se move, nos gestos, no corte de cabelo curto, no ar alegadamente piedoso como se curva profundamente perante o altar-mor da Igreja dos Terceiros, a arrogância de certas atitudes, o tom de voz…
Persona 2 – Uma pobre mulher, que se lhe vê nos sacos de plástico e na forma como os acarreta no suor de uma manhã de Verão exagerado, no ar doente, de maladias diversas e de diversos foros, desde logo o mental, no tom de voz que se afazeu desagradável na vida que o universo a obrigou a levar e lhe retira o sossego com que tem direito a viver, todos – aliás – temos direito a viver.

O local – uma igreja franciscana no centro de Braga, a tal Igreja dos Terceiros, um templo do século XVII (https://pt.wikipedia.org/wiki/Igreja_dos_Terceiros), construído por esmolas e outros contributos da comunidade secular dos leigos, onde gosto de descansar a primeira parte da minha caminhada diária, depois do café de saco na Brasileira. Ex-utente de formação franciscana, um pouco mais longe, mas na mesma cidade, não abjuro o chamamento para uns momentos de paz. Paz será sempre o mínimo que procurar numa igreja!

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Facto 1 – Uma manhã dessas, de volta citadina, procurando a sombra, que o ar queima e o sol abrasa. Entro no restaurado espaço eclesial, sento-me num banco, fecho os olhos. Não teriam decorrido mais do que 2 minutos, e a Persona 2 faz-se anunciar no seu degredo físico e na sua insuficiência mental, entrando no templo a barafustar com a vida e com a parca colheita de moedas que não lhe vai permitir almoçar algo de jeito. Também ninguém parece sensibilizar-se pela sua pobreza, há ouvidos demasiado sensíveis à dor social extrema, confundindo-a, por comodismo ou egoísmo, com insolência.
Facto 2 – Saída do seu lugar, que agora sei que é mesmo seu, na segunda fila do lado direito (é lá que continuo a vê-la, por isso deve pagar renda à Ordem Terceira, o que lhe confere direitos, desde logo circular pelos espaços fechados à plebe, ajeitar os castiçais, zelar pela ordem no interior), o livro de orações na mão (o que lhe ensinará o livro de oraçõesque prende entre os dedos?), investe contra a pobre coitada, igualmente com decibéis exagerados, “convidando-a” a falar mais baixo, caso contrário, “ponha-se lá fora e depressa”. E à pergunta se não pode pedir ajuda ao Céu, no abrigo da Ordem Terceira, a profissional dedicada à instalação, não sei com que direitos consignados, atira-lhe, entre o enfadado e presumido, mas de forma deselegante e muito pouco evangélica, eu diria nada de franciscana, nada de mendicante como é a Ordem: “O Senhor não é mouco”…
Facto 3 – Talvez devesse intervir, há momentos em que é inadmissível uma certa cobardia. Como ninguém interveio, refugiei-me no solipsismo de não querer armar-me em papo seco, e fiquei a ruminar a minha raiva em silêncio. Como os outros! Saí, entretanto, para a rua acalorada, coloquei os óculos de sol e segui caminho. Numa esplanada, ali perto, a pobre mulher continuava a invectivar em voz alta a vida, tão, mas tão, madrasta, gesticulando imoderadamente, mas sentada à mesa de alguém que se condoeu e lhe pagou um pequeno-almoço (porventura aquilo que iria constituir naquele dia também o almoço e o jantar). E não, não tinha ar de beata, de profissional de igreja, de sacripanta… era apenas uma mulher comum, modesta, numa esplanada, num gesto de gentileza e caridade cristã, às tantas envergonhada por estar a ser o centro das atenções quando apenas o que pretendia era que a mão esquerda não soubesse o que estava a fazer a direita no porta-moedas comprado na loja do chinês, e não muito abonado.
Lembrei-me, então, da parábola do óbolo da viúva (https://pt.wikipedia.org/wiki/Par%C3%A1bola_da_Vi%C3%BAva_Pobre) e sorri!

Comments

  1. JgMenos says:

    Facto 1 – A igreja promovida a estação de repouso em caminhada e de despejo de imprecações aliviadoras de vida madrasta.
    Facto 2 – O sempre popular repúdio do ‘agente da ordem’.

    Conclusão – Braga e um seu pensador…

    • POIS! says:

      Pois cá está! Realmente a utilização das igrejas pelos consumidores de divino está muito alterada.

      Realmente, na era salazaresca raramente se ouviam imprecações aliviadoras nas igrejas, porque os pides também iam à missa.

      Eram muito religiosos. Benziam-se muito nos intervalos dos interrogatórios e oravam antes do “breefing” onde recebiam a ordem de pancada do dia.

      Quanto ao repúdio do “agente da ordem” (*), temo que venha para ficar. A não ser que a polícia entre no jogo crie uma Brigada de Oração Musculada, comandada por um Brigadeiro OP, para atuação nestas situações.

      Em vez de bastonadas distribuíam pesadas penitências: assim, tipo, 300 avé-marias, 843 pais-nossos, 2000 credos (credo!)… Ninguém bufava!

      Em caso de emergência, requisitavam mesmo a ajuda divina. “Pai Nosso que estais no céu, vinde imediatamente cá a abaixo ou vamos aí buscar-te à força. Temos um mandato do Ministério Público!”.

      (1) Repare-se na sofisticada e subtil subtileza de JgMenos, ao colocar a expressão entre aspas. Como diz o povinho, lá na minha terrinha, “Deus não dorme, Menos também e não é por sofrerem de insónias” (2). Diz o povinho. Lá na minha terrinha.

      (2) Deverei dizer “terem insónias” ou “sofrerem de insónias”? Qual é a expressão correta, meu deus? São dúvidas como estas que dão cabo da pouca felicidade humana ainda existente.

  2. POIS! says:

    A beata que descreve não é, certamente, uma beata qualquer. Deve ser uma beata certificada oficialmente, uma beata encartada.

    Só essa elite beata é que tem profundo conhecimento do estado de saúde de Deus, dos seus gostos e desgostos, e mesmo do seu estado de espírito.

    No caso, é patente que revelou que Deus não sofre de incapacidades auditivas. E ainda bem, de outro modo já estava ao pé do Sala e do Júlio Isidro a fazer publicidade aos aparelhos.

    • JgMenos says:

      Soterrar cretinices sobrepondo-lhes mais óbvias cretinices – princípio dialéctico da cretinice abrilesca.

      • POIS! says:

        Ora pois!

        Acaba de falar um, pelo Menos, cretino salazaresco soterrado no comentário anterior.

        A um cretino salazaresco soterrado tudo parece o mesmo. Mas não é.

  3. ana moreno says:

    “Talvez devesse intervir, há momentos em que é inadmissível uma certa cobardia. Como ninguém interveio, refugiei-me no solipsismo de não querer armar-me em papo seco”… Papo seco?? mas porque é que quando alguém abre a boca perante uma injustiça ou incoerência deve receber esse epíteto, Armindo?

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