O mijo e o leite

No frio beirão de uma aldeia já quase espanhola, em tempos que ainda cá estão, o rapaz, o mais novo de nove irmãos, estava sentado na cozinha, olhando para a mãe, que lavava a louça do jantar. A casa alimentava marido, filhos, trabalhadores, uma pequena multidão no tempo em que os animais falavam e as máquinas de lavar louça nem sequer eram ficção científica, porque ali ainda não tinham inventado a ficção científica.

O cheiro dos animais, do suor e do fumo misturava-se com o próprio odor do frio. O rapaz, irrequieto, irreverente, vivia revoltado com os óbices do mundo, com a falta de lógica de um universo que parecia inventar obstáculos à simplicidade que deveria ser a vida. Um dia, talvez incomodado com a necessidade de ordenhar vacas, perguntou em voz alta por que raio não haveríamos de beber o mijo em vez do leite.

Nessa, como em muitas outras ocasiões, diante da constante contestação do filho, o pai, já cinquentenário e absoluto respeitador da Criação, abria a boca de assombro e de preocupação, chegando a pôr a cabeça entre as mãos e perguntando “O que há-de ser deste rapaz?”, antevendo um futuro negro a quem dizia palavras como heresias.

Ver a mãe a lavar tanta louça ferveu dentro do rapaz como uma queimadura, uma revolta proporcional à compaixão que lhe nascia de ver a mãe sobrecarregada. De repente, entre a facilidade do mijo e a dificuldade do leite, encontrou mais uma solução: “Os pratos deviam deitar-se fora todos os dias e havia outros novos. Acabava de se comer e atirava-se com o prato assim!” E imediatamente juntou a palavra ao arremesso, pondo um prato a voar pela janela, enquanto abria a porta a um novo mundo.

Uma velha tia, visita habitual da casa, vinha a subir as escadas e foi atingida pelo prato que nunca tinha chegado a sair do mundo em que se bebe o leite das vacas.

Cheiro a mijo

Quando um jornal de referência publica um título como “Ricardo Araújo Pereira não mijou fora do penico, considera ERC”, o dia está ganho, porque é como se uma pessoa muito circunspecta usasse um palavrão raríssimo e porque permite imaginar uma votação da ERC com o presidente a dizer algo como “Quem considera que Ricardo Araújo Pereira mijou fora do penico? Muito obrigado! Quem considera que Ricardo Araújo Pereira não mijou fora do penico? Certo! Quem se abstém? Pronto, nesse caso, fica aprovado que Ricardo Araújo Pereira não mijou fora do penico. Vamos, agora, analisar a queixa do doutor Marinho e Pinto relativa ao programa de Ricardo Araújo Pereira.”

Da leitura da notícia, é importante, ainda, realçar a seguinte afirmação de Marinho e Pinto: “Não se pode urinar na cara das pessoas num programa de televisão.” Depreende-se, portanto, que possamos dedicar-nos a essa higiénica actividade, desde que não o façamos no pequeno ecrã. Prevejo, a propósito, o nascimento de um novo nicho de mercado, o da produção e venda da fralda-máscara, que uma pessoa nunca mais estará segura, de acordo com a jurisprudência involuntariamente criada por Marinho e Pinto.

Para que o leitor possa também formar uma opinião sobre assunto tão momentoso, seguem-se dois vídeos: o que motivou a queixa e um, mais antigo, em que Ricardo Araújo Pereira entrevistou Marinho e Pinto, correndo, portanto, todos os riscos menos o de levar com um monumental fluxo urinário nas trombas. [Read more…]