Glória Sacer*
Celebrando os 10 anos do Aventar, em que respigamos o que o dia nos traz de novo, trago o meu poema Respigar, também ele uma homenagem à cineasta belga falecida ontem: Agnes Varda.
“Nos meus filmes quero fazer com que as pessoas vejam profundamente. Não quero mostrar as coisas, mas quero dar às pessoas o desejo de ver.”
Respigar – O que foi que eu fiz ao dia de festa
No, no. Yo no pergunto, yo deseo. (Lorca)
O que foi que eu fiz ao dia de festa,
como uma flor deitada à beira do morto
imagina como morro
familiarmente e devagar,
devagar celebra – de ontem – o acerbo
e deseja relâmpago
a terra ou eu a tua água
aveludada sede
o poema
meu
esse pomar no filão de sóis
entardecendo-nos lado a lado,
e a vontade: não, não
chegar o quanto antes
a esse lado que nos traz ioiô;
ali o boomerang-amor
impedindo-nos a fuga fácil
a esse fluxo de fastio,
e a surpresa reacendo-nos
os olhos e o ventre
lado a lado: o gozo da caça,
os risos das noites de chuva arrancando
da puberdade o mar,
o coração exposto ao veneno
múltiplo das palavras
e no grupo de cães as cadelas
lambiam o próprio pêlo e o sexo
e bailavam atrás de nenhum rabo
e estabeleciam o preceito
e a intensidade da dentada
e o tão profundo medo de olhar
o sol vazado sob a areia,
veias de terror, as pegadas
tatuando dias e noite:
até morrerem – deslumbradas –
com a carne;
e a dor fecunda como a lua,
no seu movimento peculiar,
os olhos da infância,
o gozo e o riso dos olhos da infância
extinguindo-nos
diamante o sentido livre;
e o imprevisto viveu outra vez
a carne, o frio, e neles a ficção
ficando aquém de todo o sangue –
esse momento disseminando-nos
em agora: bailarina ou soldado,
e a metáfora embala, lambe
o coração em bala mata
o impossível nas forças armadas
e as nossas forças blindadas,
de visita ao corpo de batalha;
outra vez, já enternecido desse dia, fica
segando inevitáveis colmeias ou o coração
escorrendo ou discorrendo
– o quanto gostes –
exclui o mel – sem esquecer – o quase
familiar compacto
adoecer da noite.
[Continua]* poema de 2002/3
- A Glória, em 2009, foi a autora do primeiro post da história do Aventar. Dez anos depois, dá início à nossa segunda década…
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