Erros de transcrição? Exactamente

The Fourth Protocol / le 4eme protocole (1987) uk

© AFP via Nouvel Observateur (http://bit.ly/16ujO5z)

Acabo de ler, no Expresso, uma notícia sobre “erros de transcrição” nas “escutas telefónicas para o processo dos submarinos”. O Expresso distingue “aquilo” em vez de “a Kiel”, “Monte Canal” em vez de “famoso canal”, “Canalis” em vez de “canal”. Contudo, por motivos que me escapam, o Expresso não se debruça sobre outros óbvios (e gravíssimos) erros na transcrição:

  1. “impercetível” em vez de “imperceptível”,
  2. “exato” em vez de “exacto”,
  3. “exatamente” em vez de “exactamente”.

De facto, ouvindo a transcrição, além de não detectar qualquer ocorrência de *[izɐtɐˈmẽtɨ], verifico que aquele *’exato’ é incorrecto (uma vez que, é sabido, ‘exactamente’ = ‘exacta’ + ‘mente’) e reparo na ocorrência de *’impercetível’, palavra sem qualquer significado em português europeu, pois a pronunciação corresponde a [ĩpɨɾsɛˈtivɛɫ] e não a *[ĩpɨɾsɨˈtivɛɫ]. Sendo [ĩpɨɾsɛˈtivɛɫ], logo, ‘imperceptível’: QED (este e não o outro).

Quem não detecta tais falhas (mais óbvias e mais graves) não é detective: quando muito, será *detetive — palavra com padrão grafémico semelhante ao da primeira pessoa do singular do pretérito perfeito do verbo ‘deter’ (‘detive’) e, no mínimo, homógrafa da correspondente flexão do verbo *deteter: *detetenho, *deteténs, *detetém, *detetemos, *detetendes, *detetêm; *detetive, *detetiveste, *deteteve, *detetivemos, *detetivestes, *detetiveram; etc.

P.P. – Então? Já cheguei. Aterrei agora.
A.P. – Aterraste onde?
P.P. – Aterrei da Alemanha.
A.P. – Ainda foste à Alemanha?
P.P. – Ainda fui, ainda fui, aquilo!
A.P. – Fizeste muito bem. Ao (impercetível).
P.P. – Ao Canalis, exato.
A.P. – O Monte Canal é a promessa do Bismark.
P.P. – Exatamente, exatamente

 

A máquina do tempo: canções de beber (de Omar Khayyam a Fernando Pessoa)

 

Vamos a uma viagem pelo território de Baco. Entre dornas e jarros de tinto, passaremos pela Pérsia dos séculos XI e XII da era cristã e viremos depois até Lisboa, em Setembro de 1935.

                        Vinho! O meu coração enfermo quer este remédio!

                        Vinho de perfume almiscarado! Vinho cor de rosas!

                        Vinho, para extinguir o incêndio da minha tristeza!

                        Vinho e o teu alaúde de cordas de seda, ó minha bem-amada!

 São versos de Omar Khayyam. Ainda hoje na poesia popular do Irão se usa uma forma arcaica de rima – os rubai e os rubayat – o rubai pode ter a rima a a a a ou a a b a ou a a b b, ou seja poemas de dois versos com dois hemistíquios, que são as metades ou partes de um verso, em particular de um alexandrino. O rubayat possui uma forma de métrica quantitativa inusual na poesia árabe, medindo-se a quarteta com a quantidade de sílabas e não com a quantidade de sílabas curtas e longas. Foi seguindo estes cânones que Omar Khayyam (1048-1132), mestre da chamada quadra persa, escreveu a sua sumptuosa poesia.

 

Omar Khayyam nasceu em Nichapur, no actual território do Irão. O seu nome completo era Gheyas ad-Din Abu ol-Fath Umar Ibrahim ol-Khayymi. O último nome significa «fabricante de tendas», que era o ofício de seu pai. Não foi a poesia que o celebrizou, mas sim a matemática, pois foi autor de um tratado sobre equações do 3º grau – as «Demonstrações de problemas de al-jahr e al-Muqabalah», – obra que integra uma classificação de equações. Para cada tipo de equação do 3º grau, Khayyam aponta uma construção geométrica de raízes. Procurando provar o 5º postulado de Euclides, reconheceu a relação entre este postulado e a soma dos ângulos do quadrilátero e, consequentemente, do triângulo.

Além de matemático e poeta, Khayyam foi astrónomo e filósofo. Ouçam só este rubai, traduzido directamente do persa para o português por Halima Naimova, investigadora luso – russa da Biblioteca Nacional:

                        É madrugada. Levanta-te, ó essência de deleite!

                        Bebe suavemente, tocando a harpa.

                        Deixa aqueles que estão adormecidos. Eles não encontrarão a verdade.

                        Deixa aqueles que foram. Eles nunca voltarão.

Foi, pois, com o rigor do matemático e com a visão ampla do astrónomo que construiu os seus rubai e rubayat. E a prodigiosa fantasia com que vestia a filosófica estrutura da sua poesia? Essa, talvez lhe fosse dada pelo vinho. Sim, pelo, vinho. Bom maometano, Khayyam gostava de beber. E não se trata de uma infracção, porque, segundo julgo saber, o profeta apenas proibiu o vinho de tâmara e foram os homens da estrutura clerical do Islão que tornaram a proibição extensiva a todas as bebidas alcoólicas. Perguntava, retoricamente, o poeta: «O que será preferível? Sentarmo-nos numa taberna e em seguida fazermos um exame de consciência, ou prosternarmo-nos numa mesquita com a alma fechada?». E disse também: «Bebe vinho! Receberás uma vida eterna. O vinho é o único elixir que te pode devolver a juventude. Divina estação das rosas – vinho e amigos sinceros! Frui este fugitivo instante que a vida é.»

Fernando Pessoa estudou a fundo a obra de Omar Khayyam. E escreveu rubai e rubayat. Foi a investigadora da Faculdade de Letras de Lisboa, Professora Maria Aliete Galhoz quem recuperou esses rubai e rubayat, quase todos inéditos 44 (entre éditos e inéditos), e os reuniu num livro (ilustrado por Eurico Gonçalves) que publicou em 1997 , «Canções de Beber na Obra de Fernando Pessoa». Ouçamos um rubai de Pessoa. Tem um verso incompleto, pois é um manuscrito datado de 12 de Setembro de 1935 e o poeta morreu em 30 de Novembro desse ano. Escolhi-o por ser belo e por, incompleto, nos lembrar a transitoriedade da vida:

            Não me digas mais nada. O resto é vida.

            Sob onde a uva está amadurecida

            moram os meus sonos, que não querem nada.

            Que é o mundo? Uma ilusão vista e sentida.

 

            Sob os ramos que falam com o vento,

            inerte, abdico do meu pensamento.

            Tenho esta hora e o ócio que está nela.

            Levem o mundo: deixem-me o momento!

 

            Se vens, esguia e bela, deitar vinho

            em meu copo vazio, eu, mesquinho

            ante o que sonho, morto te agradeço

            que não sou para mim mais que um vizinho.

 

            Quando a jarra que trazes aparece

            sobre o meu ombro e a sua curva desce

             a deitar vinho, sonho-te, e, sem ver-te,

            por teu braço teu corpo me apetece.

           

            Não digas nada que tu creias. Fala

            como a cigarra canta. Nada iguala