Católico rico, católico pobre

Por vezes cruzo-me com cemitérios repletos daqueles grandes jazigos, autênticos palácios muralhados que se elevam sobre a campa rasa do comum dos mortais. Todos os cemitérios os têm, é certo, e todos são livres de construir os seus castelos para o descanso eterno. Mas ocorrem-me poucas coisas, no âmbito católico apostólico romano, que sejam uma tão gritante antítese daquilo que são os ensinamentos bíblicos, como a diferenciação, após a morte, entre católicos ricos e católicos pobres. A ostentação e a estratificação social, em absoluta negação da retórica da humildade e do desprendimento do materialismo, e no limite – ou para lá dele – de alguns pecados ditos mortais são um fenómeno que atravessou os séculos e que, ainda hoje, se mantém. Conseguem imaginar Jesus Cristo a defender cemitérios em que os filhos do seu Pai se diferenciam pela posse e pela condição social? Eu não. Eu imagino-o a fazer com esses jazigos o que fez com os vendilhões do templo. Sim, é uma hipocrisia e não podia estar mais a léguas daquilo que são os valores cristãos fundadores e ancestrais. E são um dos muitos espelhos de uma sociedade profundamente elitista, onde a religião, mais do que um fim em si mesma, é um meio para outras finalidades. Já a frugalidade sobre a qual assenta o protestantismo, as suas práticas e os seus templos, por contraste com a opulência reinante no mundo Católico, diz muito sobre onde eles estão e onde nós estamos. Nada, nem isto, é por acaso.

Per saecula saeculorum

A pergunta apanhou-me de surpresa:

Sabes de alguém que queira vender um jazigo?

Nascida numa família de campas rasas, um jazigo soou-me sempre a luxo das elites,  vagamente oitocentista, um garante per saecula saeculorum de que não haveria misturas inapropriadas no além tangível das ossadas.

Entendo que se possa buscar conforto na ideia de manter unidos os membros de uma família, enfrentar a morte acompanhado por quem se amou em vida, mas é precisa uma grande dose de pensamento mágico para que esse conforto seja real. E, claro, há o horror à decomposição na terra, mas são assuntos em que se pensa às quatro da manhã, depois de um pesadelo, e se esquece pela alvorada.

Portanto, eu não sabia de jazigos à venda nem estava interessada em sabê-lo, mas a minha amiga estava e não foi preciso muita insistência para que eu acabasse a fazer-lhe companhia num encontro com um vendedor. O meu papel era fazer perguntas inteligentes, tarefa em que manifestamente falhei, e avaliar se o negócio valia a pena, competência para a qual nunca manifestei grande talento, mas é sempre comovedor ver como os amigos acreditam em nós. [Read more…]