A pergunta apanhou-me de surpresa:
––Sabes de alguém que queira vender um jazigo?
Nascida numa família de campas rasas, um jazigo soou-me sempre a luxo das elites, vagamente oitocentista, um garante per saecula saeculorum de que não haveria misturas inapropriadas no além tangível das ossadas.
Entendo que se possa buscar conforto na ideia de manter unidos os membros de uma família, enfrentar a morte acompanhado por quem se amou em vida, mas é precisa uma grande dose de pensamento mágico para que esse conforto seja real. E, claro, há o horror à decomposição na terra, mas são assuntos em que se pensa às quatro da manhã, depois de um pesadelo, e se esquece pela alvorada.
Portanto, eu não sabia de jazigos à venda nem estava interessada em sabê-lo, mas a minha amiga estava e não foi preciso muita insistência para que eu acabasse a fazer-lhe companhia num encontro com um vendedor. O meu papel era fazer perguntas inteligentes, tarefa em que manifestamente falhei, e avaliar se o negócio valia a pena, competência para a qual nunca manifestei grande talento, mas é sempre comovedor ver como os amigos acreditam em nós.
À nossa espera, à porta do cemitério, não estava o vendedor que imaginei. Não era uma figura lúgubre, de costas encurvadas e a segurar na mão um candeeiro com que ia projectando sombras sinistras nos corredores entre campas, enquanto arrastava o pé deformado e gritava impropérios a um gato negro que quase o havia derrubado ao irromper de trás de uma lápide e lançar-se a correr pela noite. Nada disso. Era um homem na casa dos trinta, magro, bronzeado, com uma linha de cabelo recém-implantado a enquadrar-lhe a testa, e o tom melífluo de quem passa o dia a dar os pêsames que não sente. Não era um vendedor de casas, era agente funerário, um honrado profissional do negócio da morte, ao nosso serviço. No bolso da camisa alvíssima, via-se-lhe o maço de tabaco com uma promessa de negócio para quem lhe sucedesse: “Fumar mata”.
Quando lhe dissemos que não havia nenhuma morte recente a lamentar, suspirou um “Graças a Deus” e concluiu que a compra era um investimento, o que ninguém lhe desmentiu nem confirmou.
Contou-nos que tinha um jazigo devoluto, com capacidade para oito urnas, um achado nos dias que correm. Totalmente reabilitado. 6 metros quadrados. Excelente localização.
––Com respeito a quê? – perguntei, incumprindo a minha missão.
Explicou que o imóvel estava situado numa perpendicular à rua central do cemitério, a 100 metros da entrada principal, e a 150 da igreja. Bons acessos.
Ri-me (bons acessos?), mas a minha amiga censurou-me com certo olhar que conheço bem e ao qual respondi com uma expressão que entre nós significa uma promessa de bom comportamento.
Chegamos, entretanto, a um bloco de cimento pintado de branco, um casinhoto com uma porta estreita de ferro e uma cruz também pintada de branco sobre a porta. Um pequeno bunker para a eternidade.
O vendedor trazia já uma chave na mão, que, como tende a acontecer nestas circunstâncias, não abriu a fechadura.
––Precisa de um jeito, é por ser nova.
Esperamos que o vendedor encontrasse o jeito. Oferecemos ajuda, ele não quis e preferiu continuar a não girar a chave na fechadura, por mais que torcesse o pulso. Um coveiro que ia a passar lançou um comentário em tom jocoso de Parque Mayer – “Então ela não quer abrir?” – ao que o vendedor rosnou uma resposta ininteligível. Mas o coveiro aproximou-se e insistiu.
––Ora deixe cá ver…
A contragosto, o vendedor passou-lhe a chave para a mão e a porta abriu-se com um estalido metálico mas sem o rangido fantasmagórico que eu ansiava ouvir.
Como o espaço era reduzido, entrámos à vez. Ora, eu nunca tinha estado num jazigo e achei este, recém-pintado de branco, com quatro prateleiras de madeira na parede da esquerda e outras quatro na da direita, estranhamente parecido com uma despensa. Que era suposto apreciar? A solidez da construção? Os acabamentos? Os tectos, os pisos? Deitei a mão a uma das prateleiras e abanei-a sem convicção, ainda que procurando cumprir de forma honrada o meu papel.
Percebendo a deixa, o vendedor informou-me que as estantes suportavam perfeitamente os caixões de zinco, que passou a ser o material obrigatório para os caixões nos jazigos.
––Naturalmente – respondi com ar de entendida.
Apreciado o imóvel, o vendedor fechou a porta e o sol, que entretanto se erguera sobre os ciprestes, iluminou a porta metálica.
––Tem uma boa exposição solar!
Sorrimos com pouco entusiasmo e ele avançou para o que interessava: 20 mil euros, um excelente preço para uma solução distinta. E a perspectiva é de valorização rápida, a julgar pelo estado actual do mercado.
––Que aconteceu aos anteriores inquilinos?
A minha pergunta não tinha nenhuma intenção particular, era só uma curiosidade que não consegui controlar.
––Creio que foram removidos… Provavelmente, as ossadas foram depositadas numa gaveta… Às vezes, os familiares vivos já não têm nenhuma memória destes antepassados e preferem… libertar-se. E o jazigo é património de que os herdeiros podem sempre dispor, claro. E que se valoriza muito…
Deixei-os a discutir se o negócio se fazia ou não, eu já tinha ouvido que chegasse.
Per saecula saeculorum? Que ingenuidade. Ao fim de umas quantas décadas, pelos vistos já pouco importa se a tíbia pertenceu à tataravó Ernestina, sobretudo quando o imóvel se valorizou o suficiente.
Vendo bem, a culpa é da vaidade de quem achou que, não indo para debaixo da terra, podia ter uma morte menos definitiva, porque é essa camada de terra e, com ela, a ocultação com respeito ao olhar dos vivos que realmente acaba de matar, não é? “Morto e enterrado”. E se nos mudam para uma construção ao alto, com porta que abre e fecha, um “imóvel” que se pode visitar, onde haverá movimento dos novos que chegam, é como se estivéssemos um pouco menos mortos, é como se a morte não fosse tão definitiva. Como justifica Frank Sheeran, n’ O Irlandês, quando descarta a hipótese de ser enterrado e opta por comprar o seu futuro lugar numa cripta: “You’re dead but it ain’t that final”.
Tudo pesado, pareceu-me caríssimo. Nunca passarei da campa rasa.
Adorei ! 🙂 🙂 🙂
O montinho de terra com papoilas e cardos para mim estará ótimo! Aqui na aldeia fizeram-se recentemente novos apartamentos. Um horror. Não sei o que me parece aquelas paredes em cimento! Mas é curioso como até no raio da morte as pessoas querem ostentar e ser melhor que os outros! Veja-se a Igreja por exemplo, com os cardeais a terem o seu próprio Panteão porque não há cá misturas com a ralé! Depois há quem queira jazigos! E simplesmente voltam todos ao mesmo sítio de onde estavam antes de nascer….
Konigvs, isto não tem nada a ver (ou, se calhar, até tem), mas um dia destes peço-lhe uns conselhos sobre suculentas 🙂
Se eu puder ajudar esteja à vontade! É curioso que ainda por estes dias pensava como acho que isto das suculentas merecia que algum jornalista pegasse no tema (não sei se alguém já o fez) e fizesse uma grande reportagem, daquelas descontraídas de domingo sobre o assunto. Há milhares de pessoas em Portugal a comprar, trocar e vender, com enormes coleções, e que investigam, qual botânico, o nome científico de cada uma!
Este seu texto está genial! Aliás, não nos deveria surpreender, pois, como habitualmente, você não só tem um sentido de humor apurado e finíssimo, como escreve muitíssimo bem. É um gosto ler qualquer dos seus Post, embora os com carga humorística, acabem por sobressair mais. Pela simples razão de que transmitir sentido de humor não é para qualquer um, ou uma. Tem de ser alguém inteligente, culta e com uma visão da vida muito especial. E capacidade de observação. Agradeço-lhe o momento de bom humor e disposição que me proporcionou. Ah, entretanto, não resisti a divulgar este seu belíssimo texto. Entretanto, ao ler estas suas linhas de extraordinário bom humor, uma peça sublime, ocorreu-me uma situação passada aqui há tempos, há uns três anos e picos, com minha mãe. Somos 4 irmãos e de quando em quando lá vamos, em missão filial, até terras da Estrela (a Serra), ali perto, onde temos uma casa grande e que nossos pais, um dia, decidiram passar a viver, mandando às malvas Lisboa. E não sei porque carga de água, num daquelas minhas visitas até lá (gosto daquelas paisagens), a minha mãe, do alto dos seus oitentas e coisa, resolver começar a pensar na morte, no bom sentido claro, a dar-lhe “alguma dignidade”, como me dizia. Assim, convidou-me a ir com ela escolher uma campa, já que “não gostava de se ver “enfiada num buraco de terra”. Gostaria de algo mais “sóbrio e distinto”, já que um jazigo estava fora de questão. Meu pai, que preferia a cremação, sempre lhe tolheu “ideias de gastos supérfluos, sobretudo para quem já cá não está, depois de partir!” E nunca mais me esquece o que a mulher (as mulheres hoje já estão em todas, ou quase, profissões, até de “Cangalheiras”, já só falta irem trabalhar nas obras, mas lá chegará o momento, a bem da igualdade de Género) que se perfilou à nossa frente nos disse, tendo em vista a venda da campa em pedra pretendida por minha mãe. Aquela publicidade ultrapassou o inimaginável. De tal forma, que encantou a velha senhora (minha mãe), ao ponto, quase o diria, lhe apetecer morrer ali logo. Vender é uma arte de comunicação! E tão entusiasmada ficou, que se convenceu de que faria meu pai “recuar naquela ideia bizarra de querer ser queimado”. Tentei chamá-la á razão. Sem sucesso. E uma vez chegada a casa, após expor, entusiasticamente, a meu pai a ideia de uma campa, teve uma enorme decepção. O velho, depois de a ouvir serenamente, não só manteve a ideia da cremação, “sem missa e sotaina”, como a proibiu de, caso ela optasse por uma campa, de levar com ela para a cova as respeitáveis cinzas dele. E o assunto morreu ali. Coube-me, depois, ser eu a informar a dita putativa “Cangalheira” de que “afinal não se faria negócio”. Resposta da figura: “mas que pena! Olhe que a sua mãezinha iria ficar muito bem!” Rosnei-lhe qualquer coisa e pisguei-me dali para fora.
É verdade, o marketing em torno da morte foi-se tornando mais agressivo. Uma semana depois da morte do meu pai, recebemos um telefonema de uma daquelas pobres vozes transformadas em autómatos, que nos perguntava se tínhamos ficado satisfeitos com o serviço e que nota lhe atribuíamos, etc. Quando o “serviço” é o funeral de um ente querido, seria de esperar mais discrição e respeito pelos clientes. A sua cangalheira também me pareceu uma jóia.
Portanto, informa-me a Carla (neste seu excelente texto) que (1) as urnas podem um dia ser abertas e os ossos lá contidos recuperados, e (2) os jazigos podem ser vendidos, servindo os agentes funerários como agências imobiliárias.
Isto é para mim informação útil, que sou proprietário de um jazigo onde estão os meus avós e pais, mas do qual, julgo eu, um dia os meus filhos preferirão desfazer-se.
Caro Luís Lavoura, acho bem que se informe porque não é matéria em que se queira correr o risco de uma surpresa, mas tenha em conta que estas crónicas são sempre ficção, mesmo que tenham farrapos de realidade.
“(…) tendo em conta que estas crónicas são sempre ficção (…)”, e inesperadamente imbuído pelo seu sentido de humor, permita-se ( s.f.f.), Carla Romualdo, enviar-lhe com todo o respeito deste mundo & dos outros, e igualmente sem uma migalha de intencionalidade pedagógica, a seguinte opinião: procure pessoas que mereçam, a sua magia. Muito obrigado pelo prazer que me proporcionou. Gratuitamente, ainda por cima.