Os terramotos do Chile. Memórias apagadas

Vulcão Villarica do Chile, sempre em erupção


Primeiro um silêncio profundo. A seguir os cães ladram, antes, tinham cantado os galos, as galinhas gorgolejavam. As pessoas calam sem saber porquê. Um segundo de silêncio. Um segundo apenas, como se estivesse medido por um cronómetro. E a hecatombe aparece com um ruído ensurdecedor. Agarra-se a uma árvore, foge-se de um buraco que abre, não sabemos como, na terra ao pé de nós. Os gritos começam. Das pessoas. Os ateus rezam, as beatas falam em palavrões, todos tentam agarrar-se a todos, todos fogem de todos. Tenta-se andar, e gatinhamos, tenta-se correr e bate-se com a cabeça contra as pedras. Correr, mas para onde? Ai há outro buraco, um fogo aparece do fundo da terra, e foge não sabemos para onde. Prende-se a um prédio. Era a nossa casa, fica em cinzas, as pedras dos prédios abatem-se sobre nós, o céu fica obscuro se for de dia, vermelho se for de noite. Os nossos já não estão, procuramos e não os encontramos. Os carros, pesados, suavemente deslizam pelo asfalto até desaparecerem num buraco aberto na estrada. Há outros atrapalhados debaixo das marquises dos prédios que servem de garagem. Guardados para sempre. Sem utilidade, insubstituíveis.

A terra salta para cima, a terra mexe para a direita, a terra mexe para a esquerda. No meio, nós. Se a terra vai para a direita, tentamos balançar o nosso corpo para a esquerda num equilíbrio impossível. A senhora gorda corre como gazela nos seus sessenta anos, agarramo-nos ao seu traseiro, esbofeteia; o velho recupera a sua agilidade e salta entre passeio e passeio para não se afundar nas fendas da estrada. Os pássaros grasnam no ar em bandos, como se se quisessem esconder dentro das nuvens para não ver o horror de Dante que aparece na terra. Os mais amorosos acodem aos mais desvalidos. Queremos tornar a casa e refugiar-nos debaixo da cama. Casa não há, apenas um buraco que arde e nos engole se não formos resgatados pelos mais calmos que, em quatro patas, sim patas, começam a resgatar os eminentes desaparecidos, esses que nunca mais são encontrados. Centenas de pessoas morrem, as camas do hospital que ruiu, são levadas a correr para os buracos do que era uma rua. Os dos prédios do décimo quinto andar, atiram-se, em desespero ao ar, caída que mata, como mata ficar dentro do andar que cai sobre os seres humanos com outros seres humanos dentro. Pessoas que desistem da vida e se deixam estar no sítio em que não deviam. A gritada é impossível, não tem destino. Apenas um: o silêncio que aparece após os saltos da terra, essa que um minuto depois, tem uma réplica, os sons subterrâneos reaparecem e já não queremos mais. Ficamos deitados. Não falamos, não reagimos, não acudimos. A adrenalina paralisa o corpo. Olhamos par a natureza e geografia conhecidas, nada existe nunca mais. O meu vizinho vai-se embora em sangue, nada há para o ajudar que não seja a o sangue dos outros que o fogo consome e ardem. Como as casas. Como as estradas. Como os parques subterrâneos. Como a minha mãe, como o meu filho. O ânimo come o valor da vida.

Um minuto. Apenas um minuto. Quase um minuto se tanto. E a terra muda de lugar.

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