Quando a água e o azeite se misturam

Por vezes o azeite mistura-se com a água. Quando acontece nem tudo é assim tão transparente. Por isso, nem todos os casos de violência doméstica são de diagnóstico simples, porque esta violência, como outras, não é sempre clara como água.

 

Não são as nódoas negras, nem os braços partidos. São outros sinais, outras mazelas, que um estudo europeu (de nome DoVE) pretende avaliar. Portugal está na primeira linha desta investigação. Ainda bem.

Meta-se na sua vida

Na sala de espera do hospital, o homem agarrava-a pelos cabelos, sacudia-a freneticamente, lançava-a ao chão, e ficava a ver aquele corpo magro deslizar pelo pavimento recém-encerado, até embater na parede ou nas cadeiras de plástico. Depois avançava para ela, passando pelos homens que evitavam cruzar o olhar com o dele, levantava-a, sacudia-a novamente, agarrava-a pelos cabelos, e lançava-a de novo, na direcção contrária. Os homens não disseram nada, baixaram os olhos com vergonha de si mesmo, remexeram-se incomodamente na cadeira, e continuaram em silêncio. As mulheres protestaram, chamaram o segurança, que, por sua vez, chamou o polícia de serviço. O homem olhou-as com ódio, ameaçou-as, levantou a mão para uma, e continuou o seu jogo com aquele corpo semi-inerte. O polícia chegou, avaliou a situação, chamou o homem à parte e disse-lhe em voz branda. “Olhe lá, em sua casa pode fazer o que quiser, mas aqui não. Vai ter de ir lá para fora.” O homem olhou com asco para as mulheres que seguiam a cena com os rostos vermelhos de raiva e impotência, ajeitou o cinto das calças, e gritou ao corpo prostrado no chão “Espero por ti lá fora, ‘tás a ouvir?” e saiu. A rapariga, que não devia ter mais de dezoito anos, levantou-se a custo e uma das mulheres perguntou-lhe: “Por que é que você não o deixa ficar?” O cabelo desgrenhado tapava-lhe parte do rosto e o lábio inferior começava a inchar. A sua voz soou surpreendentemente forte: “Meta-se na sua vida, está bem, minha senhora?” Não quis apresentar queixa, não quis ser assistida, saiu ao fim de meia hora. Sabia que ele a esperava. Não assisti à cena que descrevo e baseio-me nos detalhes contados por quem a viveu. Passou-se na sala de espera no Hospital de São João, no Porto, no último domingo. Muito gostaria de saber quem é este agente da PSP para quem a violência, desde que praticada no espaço doméstico, é legítima.