América, hoje (2): A eleição de 2020

A América vai a votos amanhã. Concretamente, o que vão os eleitores votar?

Imagem: Washington Post, em Agosto de 2019 (22,247 em Agosto de 2020)

Nenhum dos lados apresentou uma ideia clara do que será a sua governação, sendo que Biden apontou algumas linhas gerais e que Trump se recusou a falar do tema, mesmo que em alto nível (“it’s too complicated”, assim respondeu ele ao entrevistador).

Depois, há a mentira. Já ninguém espera que um político seja absolutamente sincero, mas até recentemente, estes tentavam não ser apanhados em falso. Até chegou a haver demissões por causa de mentiras. Ao longo de 4 anos, Trump institucionalizou a mentira, sem se importar em ser desmascarado. E a sua campanha eleitoral foi uma extensão em larga escala da mentira (a pandemia, o voto por correspondência, a atribuição a Biden de posições que este não defende; etc.)

Daqui a pouco mais de 24h começarão a ser contados os votos nos states. Tudo leva a crer, porém, que demorará a ser conhecido o vencedor. O que já se sabe é que Trump tem por estratégia lançar desconfiança sobre o processo eleitoral e que, se perder, acabará por recorrer aos tribunais, até chegar ao Supremo, onde conseguiu meter uma maioria republicana.

Por cá, tem havido comentários afirmando que o problema é que Trump fala em demasia mas que o que fez no país foi positivo. Ou que os que não concordam com Trump exageram. Ou até apontando para Obama ou para Biden, querendo apontar o que um fez e o que o outro irá fazer.

Em primeiro lugar, a palavra é um dos principais instrumentos dos políticos. Por isso, o que eles dizem conta e muito. Se é preciso falar de dinheiro para demonstrar esta ideia simples, veja-se o que aconteceu à bolsa depois de algumas coisas ditas por Trump (um exemplo, outro exemplo, etc.).

Sobre o sucesso da economia durante a administração Trump, pode-se deixar o discurso para os números.


Rendimento familiar médio. Fonte: Bloomberg

Ou se se preferir outra fonte:

Parece que esse grande sucesso de Trump era algo que vinha de trás. E que, se calhar, até foi Obama quem criou essas condições.

Depois, é exagero que Trump trabalhou activamente para boicotar a eleição de 2020? Começou por cortar os fundos aos serviços postais, que começaram a dizer que não conseguiriam entregar a tempo os votos por correspondência; lançou sistematicamente dúvidas não fundamentadas sobre os votos por correspondência, ignorando o próprio FBI, cujo director ele mesmo nomeou (mais aqui); os republicanos andaram a espalhar falsos pontos de recolha de votos por correspondência; e agora Trump já fala abertamente em ir para os tribunais, onde acabará por ganhar mesmo que perca.

Se isto não fosse suficiente para demonstrar de que lado está o exagero, há ainda um despacho que Trump assinou e que é um verdadeiro tiro na independência da administração norte-americana. Foi uma notícia que não se viu por cá. Essencialmente, trata-se de uma ordem executiva que dará ao presidente e aos chefes das agências governamentais, por ele nomeadados, mais margem de manobra na contratação e demissão de funcionários federais considerados desleais. O truque consistiu em alterar uma lei em vigor desde 1883 (Lei de Reforma do Serviço Civil de Pendleton), que garantia que os funcionários do governo fossem contratados com base no mérito e protegidos do arbítrio político. Apenas foi alterada, essencialmente, a expressão “competitive service” para “excepted service.” Estima-se que cerca de 100 mil funcionários verão seus empregos reclassificados, entre os quais o incómodo Fauci – Trump já disse que considera despedi-lo depois da eleição. No fundo, foi uma espécie de alargar a nomeação política, tal como cá se faz largamente na administração pública. Mesmo que perca as eleições, até à tomada de posse do novo presidente, Trump terá ao seu dispor a capacidade meter os seus boys na administração central, um verdadeiro exército de yes-man. Um autêntico pesadelo para qualquer liberal da nossa praça – desde que tire a cabeça da areia.

Por fim, o argumento do Obama e Biden. Em primeiro lugar, quem lá está é Trump. Não é Obama nem Biden. São os actos de Trump que merecem avaliação. As acções de Obama foram escrutinadas na sua presidência e as de Biden, caso ganhe, sê-lo-ão a seguir. Trazer Obama ou Biden para a discussão trata-se de um elementar acto de chutar para canto, para evitar falar daquele que detém o poder neste momento. E nem há comparação possível sobre o que será o próximo mandato, pois Trump recusa-se a dizer o que irá fazer.

Episódios preocupantes, como estes, são mais do que muitos. Fossem eles originados pelos democratas, a que por cá alguns dizem que é a esquerda, vá lá saber-se porquê, pois na América só há direita, então talvez tivéssemos a nossa direita a fazer comparações com a Venezuela ou com outro cliché do costume. Como se trata da sua direita espiritual, vão relativizado.

Olhando para estes quatro anos, é esta a América depois de Trump. Dividida e fechada em bolhas de mentiras. E é isto que vai a votos amanhã.

[Série América Hoje]

Comments

  1. Filipe Bastos says:

    Em 2016 disse que, mal por mal, talvez fosse melhor ganhar o Trampa do que a Hilária. Hoje, olhando para Biden, se calhar digo o mesmo: antes o Trampa. Antes trampa.

    Claro que entendo os argumentos dos anti-Trampa: o tipo é execrável, um mamão trafulha, um palhaço narcisista, um aldrabão boçal e amoral. O espelho do pior da América.

    E é por isso que o prefiro: a América merece o pior. Em 2016 havia uma ligeira esperança de que ele rebentasse com aquilo. A Hilária, como Obama ou Biden, seria garantidamente mais do mesmo. O Trampa era a ‘wild card’, o cagalhão fora do penico.

    Não rebentou com aquilo, provavelmente não rebentará, mas continua a ser melhor aposta que o Biden. O Biden sempre esteve e estará dentro do penico. É garantidamente mais do mesmo.

    Mas o que é mau para a América, argumentam, é mau para a Europa. Talvez, mas não devia ser. É preciso que não seja. Para isso a América tem de cair; e a Europa tem de se reerguer. Temo que sem a primeira jamais teremos a segunda.

    • Paulo Marques says:

      Mesmo ignorando o aumento da violência, as mortes na pandemia, a descredibilização das instituições nacionais e internacionais, a falta de comparência no combate a ditaduras (mesmo com aquele historial abominável), só há um probleminha… o planeta já arde e não espera.

      • POIS! says:

        Pois eu estou de acordo com o Bastos.

        Só que a vitória do Trampa é pouco! Enquanto não nos caírem em cima duas ou três bombas nucleares russas ou sauditas e o daesh não tomar conta de Marrocos e avançar para o Algarve a coisa não avança. Depois é só esperar a reereção e aí sim, acabavam com os chulecos e surgiria a gloriosa idade da democracia semidireta. Até porque a meia dúzia de mecos que escapavam já se poderia reunir na tasca ao fim da tarde a discutir os assuntos da Nação.

      • Filipe Bastos says:

        Temo que o planeta arda com ou sem Trampa. Não sei até que ponto será reversível, ou influenciável pelos nossos esforços, sempre parcos e a contragosto. Enquanto a ganância for o leitmotiv da sociedade e do mundo, infelizmente não há solução.

        Concordo que com Trampa será ainda pior, e só por isso valia a pena correr com ele. Mas uma parte velhaca de mim quer ver a América a chafurdar na trampa.

        Mal-grado o gozo do POIS, a Europa ainda me parece o melhor do planeta. Certamente melhor que a América.

        • Paulo Marques says:

          O problema de querer ver a América a comer o seu próprio veneno é que interajo com demasiados habitantes hoje em dia. Isso e a empatia, há terror que não se deseja a ninguém.
          A Europa vai pelo mesmo caminho, a queda do inquestionável neoliberalismo vai levando tudo à frente (primeiro) também.