Notas sobre as Presidenciais 4: a esquerda identitária no divã

Esta nota poderia chamar-se “o Bloco de Esquerda e a ala esquerda do PS no divã”, até porque o PCP, não sua ortodoxia conservadora, é um partido com uma matriz ideológica e programática muito diferente da restante da esquerda, mas este é um problema que não se resume à esquerda partidarizada, mas também ao eleitorado flutuante que, sendo de esquerda, não tem uma lealdade partidária cristalizada.

Quando o Bloco surgiu, alguns já não se lembrarão, teve uma entrada ainda mais fulgurante no panorama político português do que o Chega, num tempo em que não se arregimentavam pessoas nas redes sociais com dinheiro, marketing e algoritmos, mas com propostas concretas e contactos nas ruas, nas empresas ou nos fóruns culturais. Na eleição de 1999, ano de fundação do Bloco, o partido elegeu dois deputados para a Assembleia da República e o foco estava nas grandes questões que verdadeiramente interessam aos excluídos, aos revoltados e aos esquecidos pela macrocefalia lisboeta: rendimento, desigualdade, emprego, acesso ao elevador social. E sim, também lá cabiam outras causas, também elas importantes e estruturais, como o combate ao racismo e à xenofobia, os direitos da comunidade LGBT, o feminismo e outras causas mais identitárias.

Acontece que, com o passar dos anos, o discurso do Bloco, e de parte significativa do PS, retirou do centro da discussão os problemas que afectam o grosso da população, em particular dos tais excluídos, revoltados e esquecidos pelo centralismo elitista da capital, e, é meu entendimento, focou-se em demasia naquilo que conhecemos nas questões identitárias. Ora, isto levou a que o país profundo se afastasse desta esquerda, da qual, de resto, nunca foi muito próximo. E tornou esta esquerda demasiado dependente de certos grupos de pressão, bem organizados, financiados e intelectualmente alavancados por uma “intelligentsia” extremamente competente. O resultado desta mutação, que é agora visível no interior, avançará em direcção ao litoral e, caso esta esquerda não se reconfigure, será remetida para pequenos guetos elitistas em Lisboa, Porto, Coimbra e pouco mais.

Não quero com isto dizer que as políticas identitárias não têm importância ou que devem ser colocadas de lado. Nada disso. Aliás, da parte que me toca, custa-me a perceber como é que, em pleno século XXI, ainda estamos a discutir se os gays devem ou não ter direitos, ou se o racismo deve ser condenado sem contemplações. O que eu quero dizer, muito concretamente, é que não são esses os problemas que mais preocupam as massas, o grosso da população. Os problemas que preocupam estas pessoas são exactamente os mesmos de 1999. E se esta esquerda não parar para reflectir sobre este problema, e se refugiar na bolha intelectual urbana, a sua sobrevivência estará em risco. Portugal precisa de uma esquerda liberal forte e focada nos grandes problemas sociais, não de uma amálgama de questões identitárias. E a capacidade de responder a esta problemática, mais do que a ascensão do fascista que come o eleitorado do CDS e do PSD, a quem essa esquerda deve responder com soluções, definirá a sobrevivência do Bloco e o futuro da geometria variável à esquerda.

Comments

  1. Carlos Almeida says:

    João

    “O que eu quero dizer, muito concretamente, é que não são esses os problemas que mais preocupam as massas, o grosso da população.”

    Exactamente o que ando criticar no Bloco de Esquerda.

    Completamente de acordo com o teu post

    No BE, parece que se esqueceram das suas raízes : UDP, FEC ML, entre outros, etc

    Deixaram-se capturar pelo sofá,mas a malta continua a ter os mesmos problemas que em 99.

    Lembram-se do Bispo vermelho de Setúbal ?. Se fosse vivo teria uma conversa à esquerda do Bloco.

    E admiram-se que os fascistoides, tenham votos

  2. Filipe Bastos says:

    “O que eu quero dizer, muito concretamente, é que não são esses os problemas que mais preocupam as massas, o grosso da população.”

    O mesmo que aqui digo, como o Carlos Almeida, sob protesto dos fãs do Berloque residentes. Mas é simples, não será?

    Se a maioria da população é branca, heterossexual… e pobre ou remediada, que acham que estará no topo das suas preocupações? Os ciganos? Os negros? Os gays? Os negros gays?

    Há racismo e homofobia em Portugal? Claro; estranho seria só aqui não haver. Mas são escondidos, dissimulados, o que indica a vergonha de quem os sente. Além de ilegal, a discriminação é cada vez menos aceite. Compare-se com o resto do mundo.

    E agora compare-se isso com a desigualdade entre classes, entre haves e have nots, que é considerada normalíssima – até desejável. O mantra capitalista está de pedra e cal. E enquanto a casa arde, a esquerda a dar-lhe com a porcaria da identity politics.

    Mais: o elevador social não chega. Apenas vai rodando os que estão no topo, na penthouse. Tem de se diminuir o nº de andares; tem de se limitar a riqueza e redistribuir a que existe.

    • Paulo Marques says:

      Não há união da classe trabalhadora sem… união da classe trabalhadora, ou seja, também emancipação de quem não tem liberdade de se juntar à mesma luta.

    • Filipe Bastos says:

      Emancipação de quê? Nenhuma raça, nenhuma etnia ou religião, nenhum sexo ou orientação sexual impede qualquer um(a) de trabalhar ou de pertencer a sindicatos.

      Ser racista não paga as contas: qualquer empresa quer quem trabalhe o melhor possível pelo mínimo possível. Nada mais.

      Uma negra muçulmana e gay chega a presidente da EDP? Provavelmente não, tal como eu e 99,999% das pessoas. Um pobre é que não chega de certeza, mesmo branco como cal.

      Essa obsessão identitária, essa vitimização permanente, é tão estranha quão contraproducente. No resto v. é todo realpolitik e pragmatismo tal; só nisto não. Muito estranho.

      • Paulo Marques says:

        O racismo sistémico que invade invariavelmente os sindicatos tanto como qualquer outra peça do sistema colabora com a violência do sistema e legitimiza o seu uso contra si próprio.

      • Paulo Marques says:

        E não é vitimização, é o dia a dia de muitas pessoas.

      • Filipe Bastos says:

        Sim, há-de ser o dia-a-dia do Mamadou Ba e outros lutadores do Twitter. Eles só pensam em raça.

        No mundo real, fora alguma piada ou insulto a quente, ‘micro-agressões’ que qualquer pessoa gorda ou baixa ou feia também sofre, o ‘racismo sistémico’ é treta.

        Treta. Isto não é o Alabama, ou a Índia das castas, ou a China onde até um McDonalds põe um cartaz “entrada proibida a negros”. É um dos países mais tolerantes do mundo. A desigualdade não está na raça, está na classe. No dinheiro. Um preto rico vale por mil brancos pobres.

        • Paulo Marques says:

          Um ou outro insulto, lol. Como ver um ídolo na TV a ser mandado para a terra. Como ter um segurança a segui-los nas lojas. Como não serem contratados para a caixa. Como uma brasileira sempre a ser chamada de puta.
          Insultozinhos.

  3. Paulo Marques says:

    Não sei se mudou assim tanto. O BE ainda vai aos piquetes, vai às empresas falar com os trabalhadores e critica constantemente as leis laborais. Foi o BE que cometeu o pecado imperdoável de votar contra o orçamento por falta de investimento no SNS e protecção aos trabalhadores. Foi o BE que teve a iniciativa perigosíssima de querer saber onde era gasto o dinheiro oferecido ao Novo Banco, Foi instrumental na criação dos passes universais em Lisboa e Porto. Continua a reclamar mais apoio para PMEs e trabalhadores durante a pandemia, a custo de menos benefícios para os grandes grupos.
    Se passou a ser conhecido como o único partido preocupado com a universalidade de direitos universais explanados na constituição, a culpa não é do abandono de quem trabalha e cria riqueza. Até diria o contrário, é demasiado ideológico e muito menos realista nalgumas questões do que o PCP, como no caso das refinarias e da exploração de lítio.

    • Os Passos da volta says:

      “Foi o BE que cometeu o pecado imperdoável de votar contra o orçamento por …”
      Sim, pelos vistos já se esqueçeram como o Passos Coelho subiu ao poder.

      Nesta conjuntura, enquanto votarem contra orçamentos do PS, não terão mais o meu voto.

      • Filipe Bastos says:

        Açim é que se fala: para que serve um Paralamento senão para assinar de cruz?

        Este governo foi eleito por 18% dos eleitores; representa claramente a vontade de 100% do país!

      • João Castilho da Silva Brás says:

        Claro que o BE só tinha que votar contra o orçamento, quando as propostas aprovadas em orçamentos anteriores foram para caixa das cativações. Aliás O Centeno deu-lhe razão ao pôr-se ao fresco depois das ditas cativações e do contrato ruinoso do Novo Banco. Quanto à vinda do Passos Coelho a culpa é única e exclusiva do PS e do seu líder de então, Sócrates, que borrou a pintura toda.

      • Paulo Marques says:

        Estava tão errado que o governo já deu meia volta em Janeiro, coisa que podia ter feito na altura.

  4. JgMenos says:

    «uma esquerda liberal forte e focada nos grandes problemas sociais, não de uma amálgama de questões identitárias»

    Ia para apoiar, quando me ocorreu que o liberal deve ser aquela ‘coisa’ das questões identitárias e não o racional de pôr o capitalismo a funcionar e libertar os trabalhadores das amarras da servidão dos direitos.
    E aqui refiro-me a que os obstáculos a despedir tem por contrapartida a inibição de contratar, aberta e sem prazos fictícios.

    Mas bem pior, todo o processo de as melhores empresas atraírem os melhores trabalhadores pagando os melhores salários, fica suspenso da falsa segurança do emprego.
    Um mundo de tadinhos à medida dos pastores da política de esquerda!

    • Paulo Marques says:

      Por muitas explicações que deêm, por muitas liberalização do trabalho que continuem a impor (como se não soubessem todos como não pagar nada, quando se dignam a assinar contractos de trabalho), continua a não haver ninguém a explicar como é que há mais liberdade havendo mais cães para menos ossos também cada vez mais pequenos. O que vale é não criarmos mais ossos com o défice, não vá a inflação chegar à meta.

  5. Júlio Rolo Santos says:

    Sim é verdade, o chega, oportunisticamente, veio aproveitar-se do vazio deixado pelo BE. Mas desenguenem-se os aficionados do chega porque a ideologia deste partido não é o que ele apregoa mas o que está na sua génese, uma ditadura com a ajuda dos grupos extremistas que proliferam no nosso país. Quem faz por ignorar isto talvez se venha a arrepender mais depressa do que imagina.

    • Paulo Marques says:

      Não faz mal, são todos milionários temporariamente embaraçados graças ao Outro do momento.

  6. Marina Venancio says:

    Como assim “a ideologia deste partido não é o que ele apregoa “?
    O mais provável é que se há antigos comunista do BE que se mudaram para o Chega se tenham consciencializado que o Comunismo não é algo de bem, estarão até arrependidos de terem sido comunistas.
    Destes casos há por ai aos montes. Assim de memória lembro-me já da Zita Seabra e do Edmundo Pedro etc, etc(muitos esquecidos porque o partido quando se trata de destruir dissidentes não tem clemencia).
    Como pode você garantir que estas pessoas que até certa altura foram induzidas a acreditar que os Governos ( sob o disfarce da luta pela igualdade ) devem tirar toda a réstia de liberdade individual às pessoas , se tenham consciencializado que isso é profundamente errado. Como pode você garantir que essas pessoas com a ajuda do Chega não tenham simplesmente conseguido furar a ditadura intelectual de esquerda que as dominava e tenham começado a pensar pela sua cabeça ?

    Marina V

    • Filipe Bastos says:

      Conheço três tipos de direitistas:

      1) os que acham que um mundo mais justo e igualitário até seria desejável, mas é impossível;

      2) os que acham que é impossível e indesejável;

      3) os que temem acima de tudo que seja possível.

      O tipo 1) é o que passa a vida a falar em Estaline e na Coreia do Norte. Os tipos 2) e 3) variam: alguns são carneiros convertidos ao mantra capitalista, outros milionários temporariamente embaraçados, outros egoístas patológicos, outros sociopatas.

      A qual dos tipos pertence a Marina?

      Já agora: apoiar o Ventura, ou outro pulhítico qualquer, e “pensar pela sua cabeça” é um oxímoro.

    • Paulo Marques says:

      Pois deve, é o que dizem no Twitter, logo é verdade. Números é que é o caralho, ainda por cima quando as sondagens dizem que são mesmo os eleitores de direita.
      Quanto a “tirar toda a réstia de liberdade individual às pessoas”, vá estudar, pá. Ainda por cima num país onde os partidos, todos, andam há 45 anos a dar liberdade às empresas de limitarem a liberdade.

  7. Júlio Rolo Santos says:

    A Marina Venâncio parece ser daqueles ou daquelas que encontrou a sua âncora de salvação, com o aparecimento do chega, para resolver os seus problemas económico/ financeiros e uma esperança de liberdade que parece não ter encontrado no atual contexto político. Como deve saber este partido parece não ser diferente dos que mencionou porque, também aqui, já houve centenas de deserções, sinal de que o chega também não lhes satisfez as suas ambições.

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