Não são só eles que sabem porque não ficam em casa

“Daqui a 15 dias, quero ver. Por mim, nem tinham direito a ventilador!”

Para começar, são 14 dias. Duas semanas são 14 dias, não 15. Sete mais sete. Mas mais relevante ainda é que, quando a poeira da insanidade assentar, o chavão dos 15 dias irá figurar no nosso anedotário. É um prazo de validade intimidante, um macabro vaticínio de morte e, portanto, perfeitamente enquadrado na narrativa apocalíptica. Carece, no entanto, de qualquer validação factual.

Não é a genuína preocupação com a saúde pública que os mobiliza a apregoar a condenação de gente que só quis usufruir do merecido festejo. É, isso sim, um impulso onanístico e inquisitório. Observar aquilo que aos nossos olhos são condenáveis meliantes representa para muitos a oportunidade perfeita para se distanciarem da sua malvadeza. Faz sentido que o queiram fazer: como reivindicam punições e musculada intervenção policial e militar, é importante deixar claro que não é a eles que devem ser dadas as cacetadas, é naturalmente aos outros. Arrogando-se o papel de protetor de vidas e ciência, quando contribuem diariamente para destruir ambas, fazem da menina d’A Lista de Schindler que vocifera “Goodbye, Jews!” sem saber o que são judeus, só porque toda a gente à volta a ensinou a odiar.

Seria expectável que, perante a sucessão de situações em que este prognóstico da catástrofe iminente em 15 dias não se verificou, o medo em que nos afogaram começasse a dar lugar à dúvida. É dela que nasce a ciência, e não do dogma.

Mas há uma pedra pesada no caminho da lógica: o orgulho. Custa demasiado engolir o amargo   paladar do reconhecimento de um erro. Desconfiamos das nossas informações, embaraçam-nos as nossas próprias palavras e abalam os alicerces das nossas convicções. E, com a dimensão deste assunto e com a convicção emocional por trás das tomadas de posição, vemo-nos sujeitos a vexame alheio. Transformaram isto numa guerra de dois lados e qualquer cedência intelectual é encarada como humilhante derrota. A este preço, vai ser muito difícil que as pessoas, mesmo vendo a hipocondria desvanecendo-se nos ventos curandeiros da racionalidade, venham a admitir que foram enganadas. É essa resistência egotística – aliada a uma perversa inclinação autoritária e alergia a felicidade alheia – que prende a opinião pública a uma posição que neste momento não passa de um delírio coletivo.

Comments

  1. Rui Naldinho says:

    O futebol é insano. E como insano que é, mais do que um ventilador à posteriori, necessita sim de um colete de forças que o procure amarrar a alguma racionalidade.

  2. Alexandre Barreira says:

    —e bibó….sporten…..mainada…..!!!!

    • Paulo Marques says:

      De facto, carece de justificação os 15 dias, é mais perto dos 7. Não se justifica o desejo, mas também não se justifica preocupar com quem ficar com problemas respiratórios, foi uma escolha livre de, ao contrário de muitos eventos, se borrifar.

  3. José Meireles Graça says:

    Excelente texto.

  4. Filipe Bastos says:

    Concordo, excelente texto. Claro que logo virá o Paulo Marques falar em ‘matemática’ e, sem nada explicar, explicar-nos que os participantes da festarola são facínoras e deviam estar presos. Porquê? Suponho que por desrespeitar o governo.

    Os ingleses têm um bom termo para os fanáticos covideiros de que fala o Hoffbauer: curtain twitchers.

    Não tenho grande simpatia pela festarola – um bando de carneiros a celebrar feitos de mamões dum pseudo-desporto mafioso – mas se é para desrespeitar este governo sucateiro, venham mais festas.

    • Ricardo Pinto says:

      Não são os mamões os celebrados. Eles são meros agentes de uma vontade colectiva.
      Sei do que falo. Sou portista e quero que eles se fodam todos – do presidente aos jogadores. E de mim não levam um tostão.

    • Filipe Bastos says:

      A vontade colectiva poderia fazer algum sentido se o colectivo participasse ou beneficiasse de alguma forma. Não participa nem beneficia. Tudo é decidido entre mamões mafiosos, tudo é jogado entre broncos mamões.

      A maioria dos adeptos lê-me, encolhe os ombros e pensa ‘ele não percebe’. Eu percebo. Durante anos acompanhei os jogos, as contratações, o circo da bola. Via os jogos com amigos, gozava com eles quando ganhava, era gozado quando perdia. Tem a sua piada. Quando se tem 16 ou 17 anos.

      Ver adultos a falar de ‘paixão’ e a fazer estas figuras só pode causar o que agora se chama vergonha alheia. Mas o pior é que isto: 1) branqueia e enche mamões; 2) distrai a carneirada do que importa; 3) normaliza a desigualdade extrema.

      Faz bem em não lhes dar um tostão. Fossem todos assim.

      • Paulo Marques says:

        São bestas, mas isso é com eles e com quem os atura. Depois não se queixem, embora, obviamente, a probabilidade seja cada vez mais baixa.
        Não faz sentido nenhum comparar com outros eventos em que ouve deslizes, mas não desobediência, e o cansaço não desculpa tudo.

  5. Vasco Machado says:

    Retrato nu e cru dos tempos. Aliás, os arautos das desgraças sempre adiadas já começaram a sair da toca. Concordo em absoluto c/ a pedra pesada. É a maior razão pela qual esta coisa embalou.

  6. Luís Lavoura says:

    De quem é a frase inicial, que é comentada no post?

  7. Teresa Palmira Hoffbauer says:

    NÃO sejas mauzinho, Diogo!!
    Será preocupação ou dor de cotovelo por o nosso FCP não ter sido o campeão?!

    • Rui Naldinho says:

      Desculpe-me, mas independente da simpatia clubista do Diogo, com ou sem dor de cotovelo, aquilo que se passou ontem em Alvalade, foi de uma insanidade mental atroz, em face de uma pandemia. Nem o facto do jejum demorar quase duas décadas.
      Já agora, sou simpatizante do Sporting, mas há muito que deixei de dar para estes peditórios.
      Ha coisas bem mais importantes na vida, do que aturar esta cáfila de insurrectos.

      • Teresa Palmira Hoffbauer says:

        Concordo que o comportamento de ontem foi absolutamente irresponsável. O que eu queria dizer, é se os portistas ou os benfiquistas não tinham feito o mesmo, caso fossem campeões?!

        • Rui Naldinho says:

          Teriam provavelmente. E também eles seriam irresponsáveis.

        • Paulo Marques says:

          O ano passado não foi (ao contrário de outros países), mas o contexto é completamente diferente, basta o cansaço e as luzes ao fim do túnel, que não devem ser comboios, mas não são assim tão reluzentes, para não se esperar o mesmo.

  8. Eu a mim faz-me mais confusão a normalização de ver polícias com caçadeiras (perdão, shotguns) na via pública, alguns em estilo Mad Max, com capacetes de mota de viseira opaca, isso e ver disparar balas de borracha sobre um multidão compacta onde há mulheres e crianças, por causa de uma dúzia de vândalos bêbados.

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