De nenhum cigarro diremos que é o último

É certo que já poucos são enterrados, é uma questão prática, de higiene, resolve problemas de espaço, só prejudica as floristas. Cremados os restos mortais, despejadas as cinzas no jardim mais próximo, não há encargos com coveiros, lápides, flores frescas ou de plástico, círios ardentes.

Mas ainda há – e talvez sejam necessárias uma ou duas gerações mais para que o hábito se perca – os que teimam em enterrar os seus e peregrinar depois à campa, pelo menos durante os cinco anos que vão do funeral à primeira tentativa de desenterramento.

A família do Sebastião enterrou-o não por vontade expressa do falecido antes de sê-lo, mas por hábito, tradição, horror ao fogo (reminiscências dos sermões admoestativos do padre, talvez) e partir de então passou a haver “a campa do Sebastião”, lugar de romagem nas primeiras semanas após o óbito inesperado, depois tarefa distribuída pelas mulheres da família, e logo incómodo despachado de uma para outra, recebido com um invariável “outra vez? Ainda há pouco fui eu!” [Read more…]

Miss Campa

Desde sempre tive particular repugnância pelo dia de ontem. Para mim o 1 de Novembro é um dia tétrico, macabro. É um dia de cemitérios, arranjos florais, velas, sebo queimado, tudo numa miscelânea de cheiros que torna o ar irrespirável. Depois, aquelas conversas junto às campas, acerca de tudo e de nada, dos outros, da política, das doenças, do futebol. Um ritual tantas vezes cumprido com inveja e desdém, por cobiça e tédio. A obrigação cumprida para evitar o comentário alheio, a disputa parola dos arranjos florais, o asseio transformado em alcovitice.
Nos EUA, a tradição de engalanar as campas há muito que teria sido aproveitada para promover concursos de beleza. Congregaria na mesma a comunidade e tornaria tudo bem mais interessante.
Um dia, quem sabe, não teremos entre nós a Miss Campa. Já faltou mais, agora até se festeja o Halloween.
(Texto original de 2004)